ASSINE
search button

A História e as vidas pretas

Compartilhar

As manifestações ocorridas em todo o mundo contra o racismo trazem às páginas da História mais um capítulo de lutas, sangue e suor escrito por pretos e simpatizantes da causa, nos EUA e no Brasil. As mortes de George Floyd, no Texas, EUA e de Miguel Antônio, 5 anos, João Pedro, 13 e Ágatha Vitória, 8, no Brasil, resgatam o debate sobre o racismo que não findou no séc. XIX, no século XX e agora, no século XXI.

Não é mistério que o racismo no Brasil é estrutural. Um país que teve seu crescimento econômico com base no modo de produção escravista e seu crescimento populacional na mistura de etnias, hoje, tenta, de alguma forma se livrar da pecha de país racista ou, em certa camada da sociedade, que ainda exala, de forma caricata, os moldes dos oligarcas do passado, com pitadas de arianismo e do comportamento dos confederados norte-americanos, a fim de firmar-se como supremacia branca.

Onda bolsonarista à parte, o Brasil sempre buscou o clareamento de sua gente. Ação que, no passado, era uma forma de amenizar a vida da criança, fruto dos estupros de senhores de terra. Pois, uma vez com a pele mais clara, não trabalharia no eito e, sim, serviria à Casa Grande.

Na história do país, o ícone da resistência da causa dos pretos é Zumbi dos Palmares. Porém, tudo me leva a crer que há certa miopia, esquecimento, ou até mesmo falta de conhecimento dos fatos, uma vez que outros ícones de resistência à escravidão e expoentes da emancipação e cultura do preto não são lembrados.

Exemplos como o de Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, que abriu as portas para o samba carioca, em sua casa, na Praça XI (hoje, sua casa é uma escola municipal que carrega o seu nome), além de ser a curandeira que cuidava de algumas das autoridades da época, como o ex-presidente Wenceslau Brás.

Nomes como o de Luís Gama, advogado, orador, jornalista, escritor e um dos grandes nomes da resistência abolicionista. José do Patrocínio, conhecido escritor, orador e membro da ABL (Academia Brasileira de Letras), André Rebouças, engenheiro, deputado e conselheiro de Pedro II, autor de grandes feitos no desenvolvimento do Brasil Colonial, na política e nas artes, incentivando, inclusive, a carreira do maestro Carlos Gomes. E, João Cândido, que lutou pelo fim dos castigos corporais em navios da Marinha Brasileira, no episódio conhecido como “A Revolta da Chibata”, já no limiar do séc. XX (1910).

Esses personagens históricos não devem cair no esquecimento, como ocorre, por exemplo, com Nilo Peçanha, primeiro presidente da República de cor preta (14 de junho de 1909 a 15 de novembro de 1910), que sucedeu o então presidente, Afonso Pena, falecido em 1909.

Nilo Peçanha foi importantíssimo para o desenvolvimento social e industrial do Brasil. Criou o Ministério da Agricultura, o Serviço de Proteção ao Índio e os centros técnicos que tornar-se-iam precursores do CEFET’s. Também teve importância na causa abolicionista.

Caso curioso na figura de Nilo Peçanha e de outras personalidades, entre o século e o início do século XX, é que alguns pesquisadores afirmam que suas fotografias eram retocadas a fim de clarear a tez de sua pele, fato que era comum na época.

No caso de Nilo Peçanha, inclusive, não há em sua biografia nenhuma referência à sua origem africana, bem como ocorreu com outros presidentes do período da república do café-com-leite, tais como Campos Sales, Rodrigues Alves e Washington Luís. O tabu só foi quebrado com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que apesar de declarar-se branco, não negou suas origens africanas.

A história de luta e resistência do preto no Brasil não pode resumir-se às lutas de séculos pretéritos e nem somente aos quilombos. A comunidade quilombola tem a sua importância na autoafirmação de nossa identidade. Mas a luta é no dia a dia, quando as vagas para cotas raciais são vistas com maus olhos, pois, de certa forma, foram criadas de maneira equivocada.

Nossa luta não pode ser uma luta made in USA, e sim, produzida e patenteada no Brasil. Pretos têm o seu lugar a conquistar, através de direitos. Direitos de fato.

Muita coisa mudou e há muito para mudar.

Vidas pretas importam e sua história também, vide Joaquim Maria Machado de Assis, ícone da literatura nacional e mundial, fundador da Academia Brasileira de Letras e primeiro presidente da entidade, e o genial Lima Barreto, que tão bem descrevia o modo de vida e de pensar do brasileiro.

Vidas pretas importam, justamente por estarem eivadas de lutas e resistência. A história preta importa e deve ser incluída nos currículos escolares.

É a história do povo brasileiro e nesse aspecto se incluem as histórias do índio, dos nortistas, nordestinos, sulistas, etc. Somos um povo pacífico sim, mas devemos saber diferenciar pacificação de passividade e subserviência.

Não há lugar para mentes e atitudes retrógradas. A luta do preto no séc. XXI também tem de ser com o intelecto. Na era da informação instantânea não deve haver espaço para comportamentos idiotizantes, medonhos, odiosos e desprezíveis. O racismo deve ser combatido nas ruas, nos diretórios estudantis, escolas, etc. Até que seja extirpado de vez. No Brasil, EUA ou na Europa. O preto deve ser incluído de fato e não teoricamente como temos acompanhado nos últimos anos.

Vidas pretas importam porque a História importa. Toda vida importa porque somos protagonistas de nossas histórias e nosso agir dentro da história é válvula motriz para a transformação da sociedade.

*Professor de Filosofia e Sociologia