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Cem dias de quarentena

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O texto deste artigo tem sim uma inspiração no título Cem anos de solidão, de Gabo. Também poderia ser Cem dias de solidão. Mas paramos por aí, obviamente. Porque Gabriel García Márquez é inalcançável. O único jeito de nós, meros mortais, chegarmos perto dele é a leitura de suas obras de construção detalhada, fantástica – em todos os sentidos da palavra – e perfeita, e dos seus personagens complexos, inconfundíveis e inesquecíveis. Após a explicação sobre o título, voltemos à vida real e aos cem dias de quarentena, que completei essa semana.

Foram cem dias de muita leitura, trabalho em casa, convívio intenso, imposto e exagerado comigo mesma – não teve outro jeito. Mas foram também cem dias de muito inconformismo com o que havia, houve e ainda há fora do meu apartamento. Foram dois ministros da Saúde em plena pandemia. Dois ministros da Justiça. Dois ministros da Educação. Crises políticas diárias. Desrespeito com doentes, mortos, familiares. Negligência com populações pobres, de áreas menos favorecidas ou totalmente desfavorecidas. Desmandos e desgoverno por parte daquele que deveria ser o líder político máximo do país.

Cem dias de crescimento de violência doméstica entre mulheres que passaram a conviver por dias e noites intermináveis com maridos desempregados e alcoolizados. Os índices ultrapassaram qualquer expectativa: as denúncias aumentaram 40% segundo levantamento do disque 180, que recebe notificações anônimas. Mais preocupante ainda foi a explosão nos números de feminicídio: 22,2% apenas entre março de abril, de acordo com pesquisa realizada com dados de órgãos de segurança de doze estados do país.

Nesses cem dias, quando não foi a mulher que morreu vitimada pela violência doméstica, foi o filho dela, vítima da violência do estado. Ou da violência do privilégio de classe, do abismo social. João Pedro, João Vítor, Miguel, Guilherme. Filhos de idades diferentes, mortos em circunstâncias diferentes, mas todos com a característica comum de pertencerem a uma parcela socialmente excluída da população. Ou pior, de simplesmente não pertencerem a nada. Apenas ao afeto da mãe, invisível para os insensíveis.

O não pertencimento tem ficado escancarado nesses cem dias. O não pertencimento de mulheres de regiões da periferia, que não puderam parar nem se proteger para que outras mulheres pudessem descansar, não limpar a própria casa, ou aproveitar a quarentena. A mãe de Miguel, que não conseguiu se isolar e teve de ir trabalhar com o filho pequeno para que a patroa mantivesse as unhas feitas. Aliás, a manicure também não teve o privilégio de se isolar para se proteger do vírus. Li em um dos vários artigos que acessei nesses cem dias que a pandemia do Covid-19 explicitou o gigantesco hiato entre o privilégio e a vulnerabilidade social. Talvez nenhuma outra percepção seja tão clara em relação à crise provocada pelo vírus.

Cem dias de reflexões e indagações sobre como um homem sem empatia, alteridade ou preocupação alguma com o outro foi alçado ao cargo político mais alto de uma república. Um homem que um dia disse a uma deputada que ela não merecia ser estuprada porque a considerava feia. E que exaltou um torturador ao votar pelo impeachment de uma presidenta. Que nunca escondeu quem era e o que defendia.

São cem dias de quarentena, de observações, de leituras, de distanciamento. Cem dias de desgoverno, de negligência institucional, de instabilidade política. Durante uma pandemia. E, pelas previsões científicas, vêm mais cem dias por aí.

Lídice Leão é jornalista, pesquisadora e mestranda em psicologia social pela Universidade de São Paulo.