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O mal a nos sufocar

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Ardilosa, a peste nos engana, nos cansa e nos atrai para a morte. Objetos do desejo, shopping centers abrem mandíbulas de baleias. Entramos como manadas em direção ao insuspeitado matadouro. Cansados do isolamento social e nossos ouvidos, um escuta a razão, outro a perdição. Saudades da praia, da água de coco e do cineminha noturno.

Nesta hora melhor seguirmos os que insinuam que a curva achatou, que os hospitais estão vazios e que somos mais fortes que o destino. Somos mágicos, somos atletas e a doença se esvai no ar.

E saímos amparados pelos conselhos de nossos maiores, que falam e andam por aí sem máscaras a nos abraçar e a nos despedir desta para melhor. Pois, afinal somos muitos, muitíssimos, e de certa forma desnecessários, analfabetos a viver na mendicância ou na pilantragem.Melhor seria que não houvéssemos nascido e não atrapalhássemos a paisagem da casa grande.

Não pertencemos ao Brasil mítico que nos desenham os senhores dos saberes dos números complexos, dos crupiês dos cassinos de sociedades espúrias, somos apenas servos da gleba, iludidos por cantilenas de que somos livres e iguais.

Somos como estorvos, trambolhos nas estradas e ocupamos a praça pública como se pública fosse e empestamos com nossos cheiros a lavanda desses ares. Somos serviçais sem carteira e sem beira. Vivemos de mínguas e nos refastelamos com os restos do Natal. Vivemos à margem dos rios que passam pelas nossas vidas.

Com a peste, os senhores dos números complexos nos estimaram em trinta e cinco milhões. Se fôssemos votos, iríamos para o segundo turno. Mas somos sem lenço e sem documentos, sem vacinas e sem CPF. E agora somos empecilho involuntário para que o Brasil retome a sua briosa escalada do Monte Pelerino, de onde baixam os dragões das contabilidades espertas. Somos um zero.

Fizemos, como sempre, vergonha. Estamos morrendo a cada dia às centenas. Dizem que somos promíscuos, que nos empilhamos uns aos outros e nossos bafios se transmitem peçonhentos. Envergonhamos o Brasil que nossos antepassados lavraram com a enxada e o café que nossas avós coavam nas grandes fazendas coloniais. Mas, talvez por uma maldade genética, fomos ficando pelas estradas, confundidos com frutos podres, com ervas daninhas e acabamos aqui na cidade grande tão maltrapilhos quanto na casa grande.

Na verdade, os cálculos são complexos mas para cada um de nós há pelo menos mais dois de quase nós. Melhorzinhos, mas no fundo o mesmo perrengue. Um dia falta pão, no outro a filharada morre anjinho. Nem choramos mais, pois a cada dia a sua serventia. A cada alma a sua palma.

Somos cem milhões um pouco mais um pouco menos, porque os números são complexos. É como na venda da vila, um quilo nem sempre é um quilo. Mas, ouvimos dizer que a Peste está se fartando com nossas pelancas e morrem neste Brasil, de porteira a porteira, mil de nós e mais um tanto.

Dizem - me contaram, que de letra escrita não entendo - que esses números estão deixando os doutores muito aparvalhados. Parece que mundão a fora tão falando que não se deve deixar morrer assim e que nossa mortandade está atrapalhando a decolagem do Brasil, como se o Brasil fosse sair por aí voando que nem urubu.

Mas, fala de lá, fala de cá se estabeleceu uma grande confusão. Tem gente do bem que quer distribuir seiscentos reais por mês para esse mundão de nós. E o cabra safado quer a gente morta aos montes. Sei não. Mas se cai do céu seiscentos reais por mês, a primeira coisa era pagar a conta da vendinha, por que devo e sou honrado. Depois, ia comprar uma sandália de dedo que meu pé direito tá todo inchado, bichado mesmo. O resto eu dava para a patroa, que ela sabe bem o que fazer. Vestia as crias com roupa de gente. Botava feijão na mesa.

Sei não. Já pensou, seiscentos reais por mês na mão da gente? Dava para fazer uma casinha, juntando os cobres com os cobres do compadre. Ia buscar minha mãe lá em Deus a tenha.

Parece sonho de padaria. Todo mundo ia melhorar. Será que sai? Sei não. Esta gente é muito mão fechada. Acho que vão deixar a gente morrer mesmo.

A culpa é nossa. Sempre foi. Cabra da peste.

*Embaixador aposentado

O mal  a nos sufocar

                                                 Adhemar Bahadian*

                    Ardilosa, a peste nos engana, nos cansa e nos atrai para a morte. Objetos do desejo, shopping centers abrem mandíbulas de baleias. Entramos como manadas em direção ao insuspeitado matadouro. Cansados do isolamento social e nossos ouvidos, um escuta a razão, outro a perdição. Saudades da praia, da água de coco e do cineminha noturno.

                        Nesta hora melhor seguirmos os que insinuam que a curva achatou, que os hospitais estão vazios e que somos mais fortes que o destino. Somos mágicos, somos atletas e a doença se esvai no ar.

                    E saímos amparados pelos conselhos de nossos maiores, que falam e andam por aí sem máscaras a nos abraçar e a nos despedir desta para melhor. Pois, afinal somos muitos, muitíssimos, e de certa forma desnecessários, analfabetos a viver na mendicância ou na pilantragem.Melhor seria que não houvéssemos nascido e não atrapalhássemos a paisagem da casa grande.

              Não pertencemos ao Brasil mítico que nos desenham os senhores dos saberes dos números complexos, dos crupiês dos cassinos de sociedades espúrias, somos apenas servos da gleba, iludidos por cantilenas de que somos livres e iguais.

            Somos como estorvos, trambolhos nas estradas e ocupamos a praça pública como se pública fosse e empestamos com nossos cheiros a lavanda desses ares. Somos serviçais sem carteira e sem beira. Vivemos de mínguas e nos refastelamos com os restos do Natal. Vivemos à margem dos rios que passam pelas nossas vidas.

              Com a peste, os senhores dos números complexos nos estimaram em trinta e cinco milhões. Se fôssemos votos, iríamos para o segundo turno. Mas somos sem lenço e sem documentos, sem vacinas e sem CPF. E agora somos empecilho involuntário para que o Brasil retome a sua briosa escalada do Monte Pelerino, de onde baixam os dragões das contabilidades espertas. Somos um zero.

                 Fizemos, como sempre, vergonha. Estamos morrendo a cada dia às centenas. Dizem que somos promíscuos, que nos empilhamos uns aos outros e nossos bafios se transmitem peçonhentos. Envergonhamos o Brasil que nossos antepassados lavraram com a enxada e o café que nossas avós coavam nas grandes fazendas coloniais. Mas, talvez por uma maldade genética, fomos ficando pelas estradas, confundidos com frutos podres, com ervas daninhas e acabamos aqui na cidade grande tão maltrapilhos quanto na casa grande.

               Na verdade, os cálculos são complexos mas para cada um de nós há pelo menos mais dois de quase nós. Melhorzinhos, mas no fundo o mesmo perrengue. Um dia falta pão, no outro a filharada morre anjinho. Nem choramos mais, pois a cada dia a sua serventia. A cada alma a sua palma.

           Somos cem milhões um pouco mais um pouco menos, porque os números são complexos. É como na venda da vila, um quilo nem sempre é um quilo. Mas, ouvimos dizer que a Peste está se fartando com nossas pelancas e morrem neste Brasil, de porteira a porteira, mil de nós e mais um tanto.

             Dizem - me contaram, que de letra escrita não entendo - que esses números estão deixando os doutores muito aparvalhados. Parece que mundão a fora tão falando que não se deve deixar morrer assim e que nossa mortandade está atrapalhando a decolagem do Brasil, como se o Brasil fosse sair por aí voando que nem urubu.

         Mas, fala de lá, fala de cá se estabeleceu uma grande confusão. Tem gente do bem que quer distribuir seiscentos reais por mês para esse mundão de nós. E o cabra safado quer a gente morta aos montes. Sei não. Mas se cai do céu seiscentos reais por mês, a primeira coisa era pagar a conta da vendinha, por que devo e sou honrado. Depois, ia comprar uma sandália de dedo que meu pé direito tá todo inchado, bichado mesmo. O resto eu dava para a patroa, que ela sabe bem o que fazer. Vestia as crias com roupa de gente. Botava feijão na mesa.

                            Sei não. Já pensou, seiscentos reais por mês na mão da gente? Dava para fazer uma casinha, juntando os cobres com os cobres do compadre. Ia buscar minha mãe lá em Deus a tenha.

                  Parece sonho de padaria. Todo mundo ia melhorar. Será que sai? Sei não. Esta gente é muito mão fechada. Acho que vão deixar a gente morrer mesmo.

               A culpa é nossa. Sempre foi. Cabra da peste.

*Embaixador aposentado