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O Mártir

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No meu tempo de jovem se dizia: ”há mais coisas no ar do que os aviões de carreira“ ou “reina tranquilidade em todo o território nacional” até o fatídico “as forças vivas da nação alertam sobre o risco do perigo vermelho”. Geralmente, poucos dias ou horas depois, vinha a notícia que todos nós temíamos: “A vila militar está descendo.”

Desde os 14 anos até os 24, minha geração cresceu ouvindo esses gritos de guerra que se consolidaram em dezembro de 1968, quando se abateu sobre a sociedade brasileira o AI-5 e a longa noite da ditadura militar por mais 2O anos, até a promulgação da Constituição de 1988. Minha geração tinha 48 anos.

Por quase cinquenta anos, desde a morte de Getúlio até a posse de Tancredo Neves, a democracia brasileira era suscetível a abalos sucessivos provocados na maior parte das vezes por ameaças reais ou artificias a um sistema político impermeável a reformas econômicas e sociais sempre temidas por um conservadorismo histórico como suspeitas de origem comunista.

A partir do final dos anos 80 do século XX, entrou-se num ciclo de aprofundamento notável da democracia brasileira, quando, até 2013, os governos de Fernando Henrique Cardoso e de Lula, praticamente em alternância sucessiva durante quase 20 anos, lograram promover o controle da inflação, a retomada de um sustentado desenvolvimento econômico com uma vertente de proteção social importante, embora sem abalar os alicerces históricos de uma sociedade profundamente desigual. Não sabíamos que era apenas uma trégua.

A eleição de 2018 foi resposta de eleitorado cindido por forças centrífugas, onde se mesclavam uma reação óbvia ao sistema político ainda sustentado por uma camada relevante de fisiologismo, de conservadorismo, de corrupção pública e privada, e sobretudo por guinada na concepção do desenvolvimento econômico, amparada nos mitos de uma globalização descontrolada e no neoliberalismo, cujos resultados no Brasil são discutíveis, mas que aprofundaram a desigualdade social e, a partir de 2014, praticamente anularam as conquistas sociais com a retomada de uma política de austeridade.

A exemplo do ocorrido com alguns de seus antecessores, em especial com Jânio e Collor, o Presidente eleito declarou-se independente da máquina partidária até por que atribui sua eleição às fantasias de que seu apoio popular dela prescindia. Agora, a conversa é outra. Mas, iguais os métodos e os vícios.

Imitando Collor, consciente ou inconscientemente, transforma em Czar da economia brasileira um desconhecido não só do sistema político, mas também dos meios acadêmicos brasileiros, cuja folha corrida apenas revela um passado no mercado financeiro. Mas, nem nisso impressiona. Homem de convicções neoliberais inabaláveis e, desde logo, indiferente e até mesmo antagônico ao desenvolvimento social, promete, promete e mais uma vez promete mundos e sobretudo fundos.

Por influência direta dele, nossa política comercial externa acentuará sua abertura ao mercado internacional e ao ingresso irrestrito de capitais externos. Internamente, a política econômica promove medidas austeras de controle fiscal e advoga reformas ditas estruturantes com imediatas consequências na manutenção do alto nível de desemprego, na criação de um inflado mercado informal do trabalho e na redução dos níveis de proteção social na saúde e educação. E fundos não surgem, apesar da eterna musiquinha do realejo.

Dois outros mecanismos de gestão são trazidos ainda antes dos primeiros doze meses de mandato. O uso das Forcas Armadas, principalmente do Exército, em postos-chaves da administração e o abandono estrepitoso de nossa tradicional política de meio ambiente com o crescente desmatamento da floresta amazônica e a inauguração de uma política indigenista com tintura de limpeza étnica.

O escolhido para chefiar a diplomacia brasileira, embora pertencente aos quadros do Itamaraty, ilumina-se com uma ideologia abstrusa a nos alienar de nossos interlocutores internacionais e a promover uma aliança sem reciprocidade com os Estados Unidos da América que nos responde com um negligenciamento paternal. O chanceler, porém, fala bem o Tupi-guarani.

Dezoito meses nesta toada e surge um inimigo improvável. A pandemia do Covid19. Daí para frente, o governo se perde num cipoal que ele próprio criou e nos deixa a nós, brasileiros, numa profunda crise, econômica, social e sanitária.

A pandemia em poucas semanas transforma a sociedade brasileira num pântano medieval. Aos já desempregados juntam-se milhões dos que perdem o emprego seja por falência de seus empregadores ou pela drástica redução de demanda interna. O presidente desafia abertamente o isolamento social, desrespeita as recomendações de seu próprio ministro da Saúde. Demite-o. Escolhe outro, a quem igualmente demite em poucos dias. Arvora-se em doutor em medicina e prega a seus fiéis acólitos medicação condenada por autoridades nacionais e internacionais. Os números de mortos por dia chegam ao milhar, o número de infectados ao meio milhão e a tendência é a de que esses números cresçam em progressão geométrica. Jornais do mundo inteiro criticam nossos governantes e se apiedam de nosso povo. E nesta hora, o presidente num gesto de hipócrita sabedoria pretende desviar nossa atenção para o golpe que contra ele se estaria armando.

Como os Césares do primeiro Império Romano, aponta para os representantes do povo como seus carrascos, para o tribunal supremo como algoz de seu reinado. E nada mais se move, mas paira no ar um certo odor de tempos passados e uma linguagem crescentemente excludente, divisiva que “põe nos corações um grande medo”.

Desafia as instituições que sustentam nosso Estado de Direito e nelas intervém ou tenta intervir em nome de uma justiça que não ousa dizer seu nome e joga de forma ambivalente com possíveis apoios de aliados numa clara distorção da letra e do espírito da Carta de 1988. A seu lado, seu conselheiro econômico obedece aos instintos mais predadores de sua teoria econômica e propõe que a sociedade já abatida a tiros, se levante e voe como um pássaro de duas asas. E há apenas uma revoada de abutres encharcados de sangue no melhor pastoreio de suas ignóbeis vidas.

Pouco a pouco em insidiosa trama, o líder coloca neste mural de grafites obscenos a mão armada a que, impiedosamente, chama de armas da democracia, garantes de um absolutismo ilegal em que todos os códigos civis e penais se curvariam diante de sua “potestas” e de sua" vanitas”,

Erra por um detalhe. Já não há comunismo. O muro de Berlim se esboroou faz tempo. Stalin está morto. A Rússia dá viravoltas com o capitalismo. E então, todos se perguntam, golpe porquê ? Que planos existem para um futuro sem liberdade? Por que devemos fechar o Congresso? Por que devemos levar ao pelourinho os magistrados da Corte? Afinal que projeto de país se pretende forjar, se o que até hoje se anunciou foi a venda de nossos ativos, a forçada subalternidade ao hegemon e às finanças internacionais? Para que estreitos e tortuosos caminhos nos querem levar, os que sequer se preocupam com a visão que nos desvendou a pandemia, onde multidões se arrastam sem destino num país pródigo de riqueza? Será que há crimes não conhecidos e que temem a luz da verdade?

Temos a Constituição, saída da noite nunca olvidada do autoritarismo e que nos últimos trinta anos nos mostrou a senda do Estado Democrático de Direito. E dela emanam os reais projetos da nação brasileira. Por ela se levantarão os justos para defendê-la contra ventos da tirania, açoites da submissão e legionários da pandemia. Golpe, por quê? A quem beneficia?

*Embaixador aposentado