Donald Trump versus Estado democrático de direito. Estamos assistindo a última batalha entre o Estado Democrático de Direito e a definitiva instalação do Estado autoritário. O que está em jogo atinge a nós no Brasil, os europeus, os asiáticos e até os nórdicos. Caíram as máscaras e revelam-se as cartas marcadas. Não é à toa que Trump sugeriu a pena de morte para o agente governamental que denunciou suas artimanhas com o frágil presidente da Ucrânia.
O que Trump teme é sua morte política. Ao contrário de Reagan, que pelo menos chegou à presidência depois de passar pelo governo da Califórnia, Trump emerge de um mundo dos negócios com uma fama no mínimo discutível. Até hoje, a sociedade americana desconhece a origem e o montante de seus bens pois Trump nega-se a apresentar sua declaração de imposto de renda, com a esfarrapada desculpa de que seus contadores ainda a estão elaborando.
Homem de visível espalhafato, Trump tem feito dos meios de comunicação sua arena e seu algoz. Não mais. Os fatos que contra ele se avolumam na tentativa de chantagear o presidente da Ucrânia, acendem o sinal vermelho que não poderia ultrapassar sem correr o risco de inviabilizar o sistema americano de poder.
Sejamos realistas, o dano provocado por Trump, muito antes de ser eticamente condenável, tem como fulcro primordial o de ter posto em risco sistêmico o poder hegemônico dos Estados Unidos e seus mecanismos institucionais de proteção, bem como seus protocolos vigentes há séculos.
Uma coisa é Trump ameaçar bloquear um empréstimo vital para a Ucrânia em nome de uma jogada geopolítica usual. Outra, muito diferente, é suspender o empréstimo e o condicionar a uma chantagem eleitoral contra um concorrente dentro dos Estados Unidos. Ao fazê-lo, Trump pode ter utilizado uma manobra aceitável no Business americano, mas infringiu o código das relações entre patrícios, tal como entendida desde os tempos da Roma imperial.
Deixado sem críticas severas e até mesmo sem a ameaça de impeachment, Trump teria pista livre para continuar a promover sua política de autoritarismo pessoal, infringente das regras mais comezinhas do Estado Democrático de Direito. Impossível não ver na articulação entre Trump e Steve Bannon a tentativa de promover uma rede de governantes autoritários, unidos por um credo comum e tendo como paradigma uma nova concepção do Estado e dos mecanismos eleitorais. Não vou me estender sobre o assunto eleitoral, porque o tema já foi exposto até em redes de televisão no mundo inteiro.
O que interessa é perceber que Trump, depois de desorganizar, como desorganizou, o sistema internacional, visivelmente pretende reorganizá-lo econômica e politicamente em torno de claras aspirações de controle centradas em seu destino pessoal, muito antes do que em aspirações de seu país, por mais hegemônicas que sejam. Este enlace teria como candidatos naturais os chefes de governo autoritários já instalados no poder ou em vias de fazê-lo com a mão Santa da ajudinha eleitoral robotizada. Este autoritarismo pode ser ostensivo como na Hungria, nas Filipinas ou velado como parece surgir no Reino Unido de Boris Johnson, que ousou dar férias para o Parlamento britânico, imediatamente suspensas pela intervenção do Judiciário. Não há muita diferença entre Boris Jonson e Trump além da cabeleira, onde este último usa gumex e o outro um despenteado caríssimo. Também não nos deve surpreender que Trump esteja torcendo para um Brexit tão conturbado quanto possível. Se assim não fosse, Trump não teria tonitroado aos sete ventos que pretende fazer com o Reino Unido pós-Brexit um acordo comercial que não será apenas para inglês ver. Como, na minha modesta opinião, o acordo União Europeia-Mercosul, que dá vergonha a quem o lê e constatar as excessivas aberturas comerciais e financeiras autorizadas pelo ministro Guedes. A tal ponto, que mereceu uma “bronca“ do ministro do Comércio dos Estados Unidos. Bronca prontamente acatada, Guedes nos prometeu acordo semelhante com os Estados Unidos. Ou melhor.
As manobras de Trump são sempre a favor da desestabilização, muitas delas não necessariamente ilegais mas quase sempre pautadas por um primarismo político hobbesiano em que o lobo se acredita Cordeiro de Deus. E há quem nisso acredite, não só nos Estados Unidos, mas também em países da chamada periferia. Trump joga com os medos profundos da alma americana, hipertrofiando a próxima invasão dos bárbaros mexicanos, sírios ou africanos.
Líder da maior potência econômica do mundo, Trump aprofunda, com a redução de impostos para os ricos, a desigualdade social e faz vista grossa ao reaquecimento de Wall Street para mais uma crise nos moldes de 2008.
Evidente que este projeto de Trump tem óbvios apoiadores, como se pode notar pela arrecadação de fundos privados de apoio à sua reeleição após o início da investigação no Legislativo americano. Resta saber se este apoio procede de eleitores individuais ou se decorre igualmente de forças transnacionais. A ver.
O ataque às instituições democráticas, inegável, trouxe porém o risco de usar o poderio econômico e bélico americano contra o funcionamento aceitável da alternância eleitoral e em favor de um candidato e de seu projeto pessoal e de transformar os Estados Unidos numa república de bananas. Ainda que de dinamite.
Olhar e acompanhar o processo investigativo iniciado na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos é portanto a principal tarefa dos interessados na restauração das regras democráticas nos Estados Unidos e fora dele, pois serão óbvias as consequências desta investigação para todos nós. Com isso não quero dizer que Trump será ou deverá ser impedido. Certamente, se não for reeleito e colocar a culpa de sua não reeleição nos “golpistas” e nos “comunistas” já estará de bom tamanho. Nancy Pelosi é uma estadista a ser acompanhada e talvez imitada. Não ele.
Em tempo: Acaba de ser publicado na França - e ainda nem traduzido para o inglês - o livro de Piketty, “ Capitalisme et Ideologie“ que faz uma profunda análise das desigualdades sociais no mundo contemporâneo. Suas conclusões- quem diria- discrepam muito profundamente das análises e propostas de nosso Posto Ipiranga. Falaremos deles. (Não do posto; do livro e de seu autor).