ASSINE
search button

A força de Erundina, aos 84

Compartilhar

“Vamos continuar com nossa posição de resistência contra as maldades dessa reforma da Previdência. O povo ainda não percebeu totalmente, mas vai sentir essas perversidades. Estamos cansadas, mas não desanimadas. A luta está só começando”. A declaração foi feita na semana passada, numa madrugada de discussões sobre a reforma da Previdência, na comissão especial que debatia os destaques na Câmara dos Deputados. A autora: Luiza Erundina, 84 anos. Foi de arrepiar. Ao ser cobrada sobre o seu voto, enquanto ainda discursava, foi interrompida, teve o microfone desligado – qualquer semelhança com o que acontece diariamente na vida das mulheres que têm suas falas cortadas, obstruídas, nos locais de trabalho, em debates públicos, entrevistas, ou mesmo em conversas com amigos, nada tem de coincidência – mas não desistiu. Levantou-se e, com as mãos fechadas e voltadas para cima, proferiu as palavras que abrem este artigo, cheia de braveza, seriedade e – por que não? – emoção. Foi bonito ver. Luiza Erundina é inspiração permanente. Para mulheres de todas as idades, profissões e vertentes políticas – excluindo-se, claro, aquelas que aderem ao ódio e ao discurso reacionário. 

Erundina é do PSOL, partido que o sociólogo Chico de Oliveira – a quem o crítico literário Roberto Schwarz classificou como “um mestre da dialética” – ajudou a fundar, quando deixou o PT após a publicação de um enfático artigo com argumentos teóricos e práticos sobre a decisão de sair da legenda que acabara de chegar ao governo federal com Lula à presidência da República. Mesmo tendo se desligado também do PSOL, partido ao qual desferiu fortes críticas anos mais tarde, o professor emérito de sociologia da USP, autor de ensaios que revolucionaram a intelectualidade, como “O Ornitorrinco” e “Crítica à razão dualista”, recebeu diversas homenagens de integrantes dos dois partidos, após a notícia de sua morte, aos 85 anos. Novamente, Erundina mostrou, também na Câmara, do que é capaz uma mulher de 84 anos que dedicou sua vida à luta pela justiça social e sabe a importância que têm os pares certos nessa trajetória; com palavras incisivas, fez a justa homenagem a Chico de Oliveira e ao jornalista Paulo Henrique Amorim, que também faleceu nesta quarta-feira. Disse que os “dois aliados na luta pela democracia sempre estiveram à frente na defesa daquilo que é certo, dos interesses nacionais, da conquista de direitos para o povo brasileiro”.

Aos 84, Erundina dá provas de que é fundamental no exercício de resistência que tem sido tão difícil nos tempos obscuros em que o país vive. Já que combatentes da academia – como Chico de Oliveira –, do bom jornalismo – Paulo Henrique Amorim, Clóvis Rossi –, da música – Beth Carvalho, João Gilberto – estão indo embora e deixando lacunas de inteligência e talento que jamais serão preenchidas. Luiza Erundina lembra aquelas mulheres comunistas e socialistas tão citadas por Angela Davis, que tomavam a frente das plenárias nas décadas de 50 e 60, com palavras que convenciam a militância masculina da importância do apoio feminino à causa popular. Embora a principal bandeira de Davis seja a questão racial, a luta pela justiça social sempre ocupou lugar de destaque em sua história. Angela Davis e Luiza Erundina formariam uma ótima dupla nesse cenário raso e retrógrado em que vem se transformando a política brasileira.

Viva Erundina. Que discursa nas comissões e plenário da Câmara dos Deputados com a sinceridade de quem conhece a excelência de um manifesto democrático verdadeiro.

* jornalista e mestranda em psicologia social pela Universidade de São Paulo.

Tags:

artigo | erundina