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Uma política triste e derrotista

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Neste domingo, o Brasil vive mais uma crise criada. Estimulados por apelo de coloração anti-democrática, por motivações pouco transparentes e de objetivos inconstitucionais, brasileiros vão às ruas iludidos de que só o poder autoritário nos libertará dos impasses em que nos envolvemos.

O fato de a convocação popular ter sido difundida nas redes sociais pelo próprio presidente da República, que, como sempre, posteriormente modulou suas palavras e intenções, sequer é original. Quem não se recorda de Collor e seu "não me deixem sozinho", quem não se lembra de Jânio e "suas forças ocultas"? Messias que elegemos na sempre ilusória perspectiva de que seríamos poupados de um destino a desabar sobre nossas cabeças, como a represa de Brumadinho, os túneis e viadutos criminosamente construídos.

A política brasileira é monótona e ruminante. Nos últimos anos, temos vivido um ciclo de contração política - a mais recente por um período de vinte e cinco anos - e de euforia libertária de cunho messiânico. Hoje, estamos no apogeu da mais recente curva salvadora. Aquele momento de equilíbrio instável em que o pêndulo parece parar antes de retomar seu movimento regular. Sístole abençoada em política, porque despe diante do eleitor a natureza efêmera do projeto salvador.

Este momento vivemos neste domingo e sabemos quão artificiais são os gritos de guerra ou os brados de independência. Estamos num barco à deriva, cujo timoneiro, sem bússola, se orienta pela posição dos astros e pelo canto da sereia.

E assim é porque não há salvadores que nos redimam de nossos próprios erros ao longo de séculos de uma sociedade marcada pela exclusão, pela disparidade econômica e pela absurda crença de que assim somos porque assim deve ser. Nossos salvadores são projeções conscientes ou inconscientes de nosso pavor de mudança, de nosso temor de nos defrontarmos com nossas misérias econômicas, políticas e morais. E preferimos que nos digam que se nos associarmos servilmente ao hegemônico, estaremos sob o manto da paz e do progresso.

Se aceitarmos a palavra do acólito do hegemônico e fizermos uma reforma escorchante de nossas redes de proteção social, nossas terras serão abençoadas com o manah e o mel do generoso investimento estrangeiro, diz o ministro - posto que gastamos demais com a proteção social, raiz de nossas mazelas de hoje e de sempre.

Já se disse que se tivéssemos tido uma guerra civil, com pelos menos trinta mil mortos, melhor teria sido nosso destino. Somos chamados indolentes, preguiçosos, molambos, quilombolas deformados, raça vil, abjeta e esquecida.

E assim germina entre nós o ódio, cada dia servido à mesa como alimento de nossos piores instintos. Deem-me um fuzil automático e limparei das ruas e das vielas a escória humana que nos assusta. A morte nos libertará até mesmo do controle de velocidade das estradas, inaceitável constrangimento de nossa decisão de viver loucamente. Vendamos nossas empresas estatais e nossas riquezas minerais. Há quem delas saberá dar melhor destino. Nosso futuro estará hipotecado por gerações. Nossos filhos, se não puderem pagar estudos, que se dirijam ao nobre destino de não incomodar a ordem natural das coisas e se contentem com a palavra dos sacerdotes e dos curandeiros.

Essas bandeiras desfilarão neste domingo de maio. Quantas serão? Estaremos majoritariamente convencidos de que a rendição é a nossa sorte? Ouviremos os cânticos da democracia iliberal, que se espalha como alternativa doentia, num mundo em que a noite da insânia é mais acolhedora que a luz da solidariedade e da razão? Reverenciaremos a fala sulfurosa de pregadores do mal que nos incitam a fechar nossas casas legislativas e atear fogo a togas e a universidades?

Nunca estivemos tão decididamente diante da mentira e da hipocrisia e nunca a indiferença ao outro nos ameaçou tanto quanto agora.

Mas, se quisermos enfrentar, sem armas nem preces, nosso destino nacional, de nada precisamos além de nossa firmeza em dizer” não” a salvadores e profetas, armados ou desarmados.

Comecemos por uma simples e fortíssima linha de defesa, a Constituição de 1988. Embora já mutilada em muitos aspectos, nossa Constituição conserva intocado seu princípio básico, pedra angular de todo nosso sistema jurídico: a dignidade da pessoa. Ninguém melhor que nosso grande constitucionalista, professor José Afonso da Silva, para nos ensinar que "(...) o conceito de dignidade humana (...) implica que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (artigo 170), a ordem social visará a realização da justiça social (art..193), a educação ao desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205), não como meros enunciados formais, mas como indicadores de conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana" (José Afonso da Silva - Comentário contextual a Constituição. Nona edição. pág. 43).

A reconstrução de nosso país será possível quando a sociedade brasileira reconhecer que vencer os desníveis sociais e econômicos exige esforço solidário em que teorias neoliberais extorsivas sejam abandonadas. Não há de ser com medidas como a PEC do Teto de Gastos, reformas trabalhistas que alimentam o desemprego, decretos que disponibilizam armas e munições como balinhas de Cosme e Damião e sobretudo com o asfixiamento da educação e da saúde que venceremos nossas dificuldades.

A hora dos salvadores já passou. As palavras de ordem nascem murchas em suas bocas. Quem nos salvará seremos nós mesmos, irmanados em nossas frustrações e conscientes de nossas possibilidades como país e nação. E deixemos os domingos para os parques, os pais e o prazer de passear.