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Sobre machismo e suas vítimas

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Dia desses, um amigo me surpreendeu com uma informação que ao mesmo tempo era um questionamento: Lídice, você sabia que eu sou vítima de machismo? Explico e complico: ele é hétero e casado há dez anos com uma moça alta, magra, morena, cabelos longos, totalmente dentro dos padrões de beleza impostos pela sociedade.

Sem entender direito, segui na conversa, com a pergunta óbvia: como assim? “Quando saio com a minha mulher, quando vamos a bares ou baladas – sim, eles gostam de bares e baladas – invariavelmente ela é abordada por um tipo de homem que acha que ostentar – dinheiro, carro, relógio, bebida – é garantia de conquista. É só eu sair de perto, que se aproxima um sujeito exibindo algo que imagina ser certeiro na conquista de uma mulher: ou um carrão SUV ou um relógio grande e caro ou uma dose de uísque envelhecido há meio século ou um cartão de crédito black ou tudo junto e mais um pouco. Minha mulher se esquiva e eu, sempre de olho porque já sei que isso vai acontecer, volto e mostro que ela está comigo. O tal sujeito – às vezes eles vêm em bando – me olha de cima a baixo e sai de perto, quase sempre sem nos perder de vista; ou esperando uma brecha para se aproximar novamente e exibir para a fêmea as qualidades de macho poderoso cheio de dinheiro (faz-me rir!) ou tentando entender porque aquela moça linda não se dobrou aos encantos capitalistas dele e se mantém fiel e apaixonada ao lado daquele homem sem relógio, sem SUV e que paga as cervejas no débito”. E conclui: “minha mulher fica visivelmente incomodada com tais abordagens, geralmente grosseiras e até mesmo agressivas, que os machistas se acham no direito de fazer porque ela é ‘apenas’ uma mulher e eles são homens com dinheiro. O incômodo dela é o meu incômodo e eu sofro por não poder fazer nada contra esses tipos’.

Não quero aqui levantar discussões – e, muito menos, questionamentos – sobre a afirmação do meu interlocutor que diz se sentir vítima de machismo. Sabemos que as histórias narradas por ele são quase nada diante dos números de feminicídio, agressões contra mulheres, violência doméstica, desqualificação no mercado de trabalho etc. Temas abordados neste espaço semanalmente.

Porém, se levarmos em consideração o desconforto que ele e a mulher sentem durante os momentos citados, a raiva que muitas vezes despertou nele vontade de partir para a briga física, a intimidação a que sua companheira é submetida diante de tais abordagens – ela mesma usou o termo: disse que se sente intimidada e que nem gosta de imaginar o que os machistas-babacas-trogloditas fariam diante de uma recusa, caso estivesse sozinha em uma balada dessas, como todas sabemos que fazem com mulheres desacompanhadas – podemos acreditar sim que ele está sendo vítima de machismo. Porque o machismo está em toda parte. Porque o sentimento de ser vítima de machismo não pode ser deslegitimado, venha de onde vier. Porque quanto mais vítimas de machismo apontarem o dedo para o problema ou para os machistas, mais fraco esses algozes ficarão.

No livro “Sejamos todos feministas”, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie joga luz no cenário cultural do “homem provedor”: “é claro que, por uma questão histórica, em geral é o homem que tem mais dinheiro. No entanto, se começarmos a criar nossos filhos de outra maneira, daqui a cinquenta, cem anos eles não serão mais pressionados a provar sua masculinidade por meio de bens materiais.” Chimamanda levanta discussões sobre machismo e feminismo, sempre de forma globalizante e inclusiva. É dela a frase que escolhi para encerrar esta história, ao mesmo tempo tão particular e tão geral: “A meu ver, feminista é o homem ou a mulher que diz: sim, existe um problema de gênero ainda hoje e temos que resolvê-lo, temos que melhorar. Todos nós, mulheres e homens, temos que melhorar. Salve, Chimamanda!

* jornalista e mestranda em psicologia social pela USP

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artigo | machismo