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O Brasil tomado de assalto e os reféns da mediocridade

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Vivemos uma época plena de vigor e tensionamentos. Se por um lado a tecnologia de comunicação e interação social é cada vez mais potente e permite, ao menos em tese e tecnicamente, estabelecer contato de forma ampla e sem fronteiras, por outro, nunca se viu a gestação de tantos “ruídos” e interferências nas tentativas de diálogo. Ao mesmo tempo em que dispomos de redes robustas que permitem a troca e capilarização de informações, a capacidade de escuta, a concatenação de ideias, a elaboração de raciocínios, o compromisso ético com a divulgação de fatos e interpretações, e, principalmente, a vontade e habilidade para rever conceitos e opiniões, tendem a zero. Nesta conjuntura, é o caso de perguntar: para que, e a quem, serve a tecnologia nos dias atuais? Em meio a tantas possibilidades de fala, por que temos sido tão rasos? A frivolidade reinante é consequência inevitável, ignorância ou escolha planejada e tendenciosa?

Estas são algumas questões que emergem em cenário cujo caos é crescente, e que campos como o da filosofia e das ciências sociais devem e se ocupam. As artes também têm assumido importante papel na reflexão sobre a lacuna entre o potencial dos meios de comunicação construídos pelo homem moderno, e a superficialidade da conversação e vivência diárias. A série de ficção científica Black Mirror é um bom exemplo. Criada pelo britânico Charlie Brooker explora as repercussões inesperadas e as deformações da produção tecnológica. No episódio Queda livre, a trama apresenta sociedade baseada em um sistema de pontuação virtual, na qual todas as relações na vida dependem da “popularidade numérica”. As pessoas se avaliam mutuamente e atribuem notas uns aos outros de maneira leviana. E assim, seguem construindo relações nas quais impera a superficialidade. O único intuito é ser falsamente gentil com o próximo para aumentar o score pessoal visando obter ganhos materiais, status social, e abrir portas.

O mundo distópico da série é uma metáfora da vida de hoje. De certa forma, trata-se de condição mundial, mas é fato que o Brasil anda especialmente assaltado pelo comportamento distorcido de sagrar a mediocridade em lugar de valorizar a prosa lúcida, pautada nos sentimentos honestos, bom senso e razoabilidade. Em triste ironia, no momento em que podemos difundir conhecimento e transmitir informações em longo alcance, os discursos estão repletos de significados caricatos, limitantes e preconcebidos. Muitos que possuem voz pública vêm se dedicando a comentários baseados em uma supremacia imaginária, seja religiosa, de gênero ou política, defendendo ideias sem qualquer sustentação plausível. Como postular, por exemplo, que escolas públicas devam ensinar sob a ótica de Deus? O Estado é laico não por acaso. Assim o é para garantir que, independente dos credos, sejamos tratados em igualdade.

A fé e religiosidade são valiosas e podem reconectar o homem à natureza, a si mesmo e alimentar a vida de sentidos nobres. A religião pode ser fonte de conhecimento, caso não esteja associada à crença cega e aos exploradores da cegueira alheia. A etimologia da palavra, que não é consenso, se relaciona às ideias de reler e religar, respectivamente do latim relegere e religare. Ao pé da letra, a religião implica em reinterpretar e revisitar histórias – condições essenciais para a construção de saberes e olhares crítico e criativo. Mas o caminho da fé é escolha e jornada pessoal. Já a educação pública deve ser pensada para o coletivo. As instituições de ensino formal não podem dispensar os saberes construídos ao longo de tantos séculos, e gerados em bases metodológicas e confiáveis. Seria voltar atrás. Como é possível negar a cognição científica em pleno século 21, após tantos benefícios e avanços daí advindos? E como expressar tal deformação sem pudor ou profundidade alguma? A quem demos tamanho poder de apresentar proposições do tipo? Mas os chefes de Estado, em certa medida, refletem parte de seu povo, e nesse espelho escuro que teima em apagar o conhecimento, jamais haverá luz...