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Do que são feitas as coisas

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Este ano, comemora-se o 150º aniversário da invenção da Tabela Periódica dos Elementos por Dmitri Mendeleiev (1834-1907). Esse cientista russo descobriu que os 63 elementos químicos então conhecidos poderiam ser organizados em uma tabela, ordenada inicialmente pela massa dos átomos dos elementos. Ele percebeu que, arranjando os elementos dessa forma, suas propriedades químicas exibiam variação regular. Essa regularidade levou-o a deixar espaços vazios na tabela, nos quais deveriam ser postos elementos que ainda seriam descobertos Mendeleiev chegou mesmo a prever propriedades deles.

Com o passar do tempo, o esforço de pesquisadores fez crescer o número de elementos conhecidos hoje, são 118 no total. Combinando de diferentes maneiras esse número limitado de elementos, podem ser formadas todas as incontáveis substâncias existentes na Terra e fora dela.

A ideia de classificar os elementos químicos em uma tabela foi um imenso salto na descrição da natureza. Para comemorar a data, a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou 2019 o Ano Internacional da Tabela Periódica.

Coincidentemente, neste ano, celebra-se outro aniversário: o centenário de nascimento do italiano Primo Levi (1919-1987), escritor premiado e célebre por obras importantes, como A Tabela Periódica, publicado em 1975, em que faz um apanhado de histórias que viveu, cada uma delas com um título associado a um elemento químico. Essa obra de reconhecido valor literário e importante como divulgação científica foi considerada, em 2006, em enquete da Royal Society de Londres, o melhor livro de ciência jamais escrito.

Primo Levi nasceu em Turim, em 31 de julho de 1919, em uma família de imigrantes judeus originários da França e Espanha. Desde cedo, demonstrou interesse em ciências e acabou ingressando no curso de química na Universidade de Turim. Formou-se em 1941, durante a 2ª Guerra Mundial, apesar de, a essa altura, o governo fascista de Benito Mussolini (1883-1945) ter estabelecido restrições que dificultavam a evolução profissional dos estudantes de origem judaica.

Em 1943, com a queda daquele ditador, o exército alemão ocupou o norte e centro da Itália. Levi, que tinha aderido aos partigiani guerrilheiros que lutavam contra as forças nazistas de ocupação foi preso em 1944 e enviado ao campo de concentração em Auschwitz (Polônia). Sobreviveu a esse período em parte graças a seu conhecimento em química, utilizado em uma fábrica mantida por trabalho escravo no interior do campo, onde passou 11 meses, até a libertação dos prisioneiros pelo exército soviético.

Numa passagem de A Tabela Periódica, Levi relata sua prisão pelas tropas italianas e o curto período que passou em uma cela com um garimpeiro, antes de ser entregue aos soldados alemães esse é o capítulo intitulado Ouro. Em outros trechos, comenta como era a vida no regime fascista; como o ambiente era opressivo e brutal; e quais eram as consequências sobre as pessoas. Referindo-se a seu círculo, ele comenta: “o fascismo atuou sobre nós todos, assim como sobre quase todos os italianos, alienando-os e tornando-os superficiais, passivos e cínicos”.

Em outro capítulo (Cério) no qual descreve sua vida em Auschwitz , Levi conta que descobriu, no laboratório de química do campo, fragmentos de uma liga metálica contendo esse elemento. Essas diminutas porções de matéria, que podiam ser usadas como pedras de isqueiro, viraram moeda de troca para obter alimentos e cigarros.

Em seus textos, Levi revela interesse especial pelo valor do trabalho técnico. Em seu A chave estrela (La chiave a stella, 1978), segue os passos de seu personagem, Faussone, técnico que viaja o mundo instalando ou reparando caldeiras, guindastes e outras instalações industriais. Habilidoso, Faussone tem orgulho de sua capacidade técnica e de seu trabalho, o qual lhe dá muito prazer. A satisfação que qualquer pessoa sente ao fazer bem seu trabalho está presente em todo o texto. Levi observa: “Se excluirmos os momentos miraculosos e isolados que o destino pode conceder a um homem, amar seu próprio trabalho (infelizmente, privilégio de poucos) é a melhor aproximação concreta da felicidade na Terra: mas essa é uma verdade que poucos conhecem.”

Levi é um autor com perfil único, que busca sua inspiração tanto nos grandes clássicos da literatura quanto nas ideias e na prática da ciência e técnica. Tendo vivido em um dos momentos mais sombrios do século passado, ele nos deixa um exemplo de como manter a humanidade, lucidez e a integridade em um ambiente de terror e de degradação, como no campo de Auschwitz.

Ao longo de um século e meio, a Tabela Periódica tem nos ajudado a entender de que são feitas as coisas (vivas ou não). E seus elementos têm sido inspiração para poetas e escritores, permitindo um amálgama entre ciência e humanidades, como fez de maneira notável Levi.

Alberto Passos Guimarães é Pesquisador Emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas

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