ASSINE
search button

Das flores aos protestos

Gabriel Souza -
Ilustração de terça-feira, dia 12 de março de 2019, página 9
Compartilhar

Escrevo esse texto ainda sob o impacto do Carnaval do "não é não" e das manifestações do Dia Internacional da Mulher. Foi o Carnaval dos blocos e - ao contrário da intriga que um determinado capitão alvo de críticas e xingamentos bem-humorados tentou plantar - foi a festa da alegria, do respeito, da vitória da Mangueira que exaltou a resistência, os verdadeiros heróis e Marielle Franco. No Carnaval do "não é não", mulheres saíram às ruas de maiôs, biquínis, shorts, blusas curtas, camisetas, fantasias. Saíram como bem entenderam, sem o medo de sua roupa ser interpretada como um "convite" à violência, ao abuso, ao desrespeito. Pós-carnaval, foi a vez das manifestações de mulheres ecoarem por todo o país, enchendo as ruas de uma energia de quem resolveu trocar as flores pelo protesto. E não é para menos. Os números da violência estamparam os jornais do país e se espalharam pelas redes sociais como um grito de "basta".

Macaque in the trees
Ilustração de terça-feira, dia 12 de março de 2019, página 9 (Foto: Gabriel Souza)

Segundo pesquisa divulgada pelo jornal Folha de S.Paulo, baseada em um estudo do advogado Jefferson Nascimento, da Universidade de São Paulo, 119 mulheres foram vítimas de feminicídio só em janeiro desse ano. No mesmo período, houve 60 tentativas de assassinatos de mulheres no país. Ainda de acordo com os dados do pesquisador, que fez o levantamento a partir de casos publicados na imprensa, mais de 70% dos feminicídios tiveram como autores maridos, namorados ou ex-companheiros das vítimas. Os criminosos ou não aceitavam o fim da relação ou desconfiaram de traição ou tinham ciúme excessivo - e mortal. Nunca é demais lembrar o conceito de feminicídio: crime de homicídio cometido pelo fato de a vítima ser mulher. Ou seja: os criminosos assassinam porque não aceitam perder o poder sobre o corpo que consideram deles.

Exagero? Idade Média? Então, quem ainda não leu sobre, preste atenção neste caso: uma universitária de dezenove anos viajou para um sítio com o namorado, com quem se relacionava há um ano, e um grupo de amigos. Após consumir bebidas alcoólicas, a moça, que se chamava Isabela, passou mal e foi deitar em um dos quartos. O cunhado do namorado entrou no local, viu Isabela desacordada e a estuprou. O namorado, de 21 anos, flagrou a cena e, ao pensar tratar-se de uma traição, espancou e colocou fogo na vítima e na cama em que ela estava. Isabela teve 80% do corpo queimado e não resistiu. O assassino foi preso em flagrante. O caso não foi uma traição, como pensou o namorado.

Mas atenção: mesmo que fosse, o crime não estaria justificado. Isabela foi vítima várias vezes: do estuprador, que se aproveitou da sua embriaguez, do namorado, da irmã do namorado - que ajudou nas agressões, ao pensar que ela havia "seduzido" o cunhado - e até mesmo de uma emissora de TV, que noticiou o crime da seguinte forma: "Jovem tem 80% do corpo queimado após ser flagrada na cama com o cunhado". Assim, sem explicar que Isabela havia sido estuprada. O lado bom desta história macabra é que as redes sociais gritaram contra o título no mínimo errado dado pela emissora, que se viu obrigada a alterar a chamada da reportagem.

A morte de Isabela foi o marco de uma nova forma de interpretação do Dia Internacional da Mulher. Não queremos flores, queremos respeito. Não queremos presentes, queremos viver. Não queremos ser estupradas por criminosos asquerosos nem mortas por machistas covardes nem julgadas por mulheres que também podem virar vítimas. Não queremos. E "não é não", como bem conseguimos mostrar no Carnaval. Assim como nos impusemos no Carnaval, vamos continuar gritando "não é não" durante o ano inteiro. Por Isabela e por todas as mulheres!

* Jornalista e mestranda em Psicologia Social pela USP