ASSINE
search button

A fantasia de ser uma pessoa de bem

Caio Paiva -
Ilustração domingo, pagina 9
Compartilhar

O carnaval, do latim carnem levare, que significa afastar-se da carne, é uma das mais representativas manifestações da cultura nacional, embora suas raízes não sejam brasileiras. A festa reúne milhares de foliões em ruas e praças públicas de todo o país, que se agrupam segundo características regionais próprias em explosão multicultural. Dos bonecos saltitantes e coloridos de Olinda, passando pelos enormes e democráticos blocos cariocas, pulando como pipoca ou em cima dos trios elétricos baianos, a população se dedica ao entretenimento. Para outros tantos, os festejos significam oportunidade de trabalho e negócios.

A indústria cervejeira, por exemplo, vê na festividade momento especial de vendas e promoção de marcas. O mercado de costura, produção de adereços e fantasias também se alimenta da grande festa e nutre centenas de famílias. Trabalhadores informais batalham, literalmente com muito suor, em meio aos que se divertem, vendendo toda sorte de bebidas e ornamentos. Fato é que, independentemente das críticas que possam ser feitas à organização pública das cidades durante o reinado de Momo, ou mesmo das questões de gosto pessoal, o evento é expressão preciosa de nossa cultura, movimenta a economia do país e precisa ser preservado.

Macaque in the trees
Ilustração domingo, pagina 9 (Foto: Caio Paiva)

A interação entre ciência e carnaval se dá em várias camadas e pode ser verificada em assuntos de enredos, no uso de tecnologias gerando efeitos espetaculares ou mesmo no carnaval se constituindo como objeto de estudo nas áreas de antropologia, sociologia ou história, por exemplo. A origem da celebração não é consenso. Alguns localizam os primórdios na Babilônia, outros na Grécia ou Roma. O cristianismo, ao buscar incorporar o evento ao calendário religioso, ressignificou a festa. Os preceitos católicos o definem como uma forma de marcar o período que antecede a quaresma, quando os fiéis devem evitar o consumo de carne em alusão ao jejum de Jesus no deserto.

Há famosas e diversificadas manifestações carnavalescas. O Mardi Gras de Nova Orleans e sua bela profusão de colares, o mítico e luxuoso carnaval de Veneza, e seus idílicos arlequins, pierrôs e colombinas ou o carnaval de Nice, repleto de flores e fogos de artifício. O ponto de convergência entre as celebrações, e que está na essência do carnaval, é a possibilidade de omitir ou trocar identidades, e, assim, obter alternativa de expressão livre e anônima. Ao mesmo tempo, pode ser oportunidade para que os papéis sociais sejam trocados temporariamente e grupos que normalmente não possuem voz, ganhem protagonismo. Assim, os mais pobres viram reis e rainhas, o senso estético ganha novos parâmetros e a cultura dos excluídos é exaltada.

O carnaval pode ser interpretado como momento de alienação ou fuga da realidade, mas, a julgar pelas espirituosas fantasias e temas nas comemorações de rua e escolas de samba, vê-se que é também lugar de aguda crítica social. Entre confete e serpentina, a problemática do racismo, o papel da mulher, o desequilíbrio de oportunidades, o oportunismo de políticos, a impunidade e o falso moralismo são escancarados com irreverência e propriedade únicas. A agremiação campeã do desfile carioca de 2019, a Estação Primeira de Mangueira, é exemplo do feliz encontro entre reflexão, alegria e estética.

Com o enredo "História para ninar gente grande", colocou em plena avenida, e para todo o planeta, a importância da história não oficial, afirmando a ancestralidade africana e a necessidade premente de reconhecer a voz daqueles que tantos querem manter calados. Muito além dos binarismos, o samba nos diz que a história de cada povo tem que ser contada por ele próprio. De forma divertida e contundente, a escola trouxe ao centro da discussão o debate que muitos têm rechaçado em arena de amplíssimo alcance. Que outra ocasião, não fosse o carnaval, tal feito seria possível, principalmente nos dias de hoje?

Vivemos tempos de total inversão de valores. Época em que se autoproclamam "pessoas de bem", aqueles que defendem a violência de armas, cultivam o ódio ao próximo, seja pela tez, gênero ou orientação sexual, negam dívidas históricas, relativizam assassinatos, engessam o conceito de família e alcançam o refinamento da crueldade ao celebrar a morte de crianças. A despeito de qualquer ideologia, a bondade, o amor e a empatia não deveriam habitar o coração dos "homens de bem"? Por que, passado o carnaval, tudo parece continuar "trocado"? As possíveis respostas são complexas. Nesse caso não há motivos para celebrar. É profundamente triste, e indigno, quando o homem escolhe a pior versão de si mesmo para desfilar, em lugar de eleger a brandura de ser humano e amar acima de tudo.

* Mestre em Teatro e doutora em Ciências

Tags:

artigo | fantasia