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A reforma da Previdência fala sobre futuro, mas ainda existe um futuro?

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"Trabalhe até morrer". "Idosos pobres receberão menos que um salário mínimo". "Destine à previdência privada uma parte ainda maior da sua renda para tentar ter uma aposentadoria decente". Não faltam gritos de ordem potentes e manchetes assustadoras sobre a reforma da Previdência. A despeito de minúcias legais muitas vezes confusas, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC), apresentada pelo governo Bolsonaro, trata de assuntos muito simples e essenciais na vida: o trabalho, a velhice e, eminentemente, o futuro das pessoas.

Apesar disso, o assunto não parece engajar quase ninguém. Quem é de militância sabe que outras temáticas, como o feminismo e os direitos LGBT, enchem as ruas e movimentam mais as redes sociais do que discutir a idade mínima e em que condições as pessoas poderão se aposentar. Para além das discussões sobre luta de classes e política de identidades, o que parece se impor sobre a capacidade de mobilização dos movimentos sociais contrários à reforma é o sucesso do neoliberalismo em construir o futuro como tempo e lugar do caos inevitável - não há nada que a gente possa fazer para alterar o que está por vir.

O projeto neoliberal gerou um profundo mal-estar ao aumentar a concentração de renda, diminuir o cobertor social dos Estados, incentivar mecanismos individualistas de sociabilidade, em detrimento da solidariedade, e estabelecer padrões de consumo e produção incompatíveis com o planeta. No entanto, como mitigou os instrumentos de luta social e transformação política, a sensação generalizada é a de que não parece haver saída.

As gerações mais novas, iniciantes no mercado de trabalho, são acusadas de postergarem a entrada na vida adulta. Cada vez mais, indivíduos com 30 e tantos anos permanecem na casa dos pais, por exemplo. Na internet, brinca-se que os "millennials" não compram carro, imóvel próprio, sequer transam. Nesse sentido, o desinteresse desse grupo acerca da reforma da Previdência demonstraria, uma vez mais, sua apatia diante das responsabilidades da vida. Contudo, mais do que apontar o dedo e ridicularizar uma faixa etária por suas dificuldades, talvez fosse mais efetivo compreender que o seu desdém parece advir da constatação das parcas possibilidades de futuro oferecidas pelo modelo de sociedade atual.

Aqueles que já estão no mercado de trabalho experimentam instrumentos de precarização que anteciparam, nos últimos 20 anos, muitos dos mecanismos que agora são oficializados com a reforma. A pejotização, a uberização e a informalização fizeram com que faixas enormes da população normalizassem um estado de coisas em matéria previdenciária. Para eles, o futuro também é o tempo e o lugar de modificações que nem são tão novas assim. Mesmo que deletérias, impõem-se como a realidade incontornável.

É absolutamente triste que as pessoas não tenham mais a capacidade de enxergar possibilidades melhores de futuro. Para elas, essa PEC é a nova concretização do fadado insucesso "estamos quebrados", "existe gente demais no planeta" etc. A despolitização, provocada pelo projeto neoliberal, está na base desse processo de desencantamento pelo mundo, de descaso com o amanhã. A política possibilita a construção coletiva de sonhos, de um futuro pelo qual podemos lutar no presente. Assim, os movimentos sociais interessados em angariar apoio popular contra a reforma da previdência lutarão também contra a percepção generalizada da inevitabilidade do caos, produtora de uma inércia difícil de ser superada.

* Advogado na Secretaria de Estado de Direitos Humanos