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A primeira comunhão

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Gosto de recontar episódios de infância. Pode parecer irresponsabilidade, no meio da crise nacional, voltar-se a assunto tão trivial. Mas, convenhamos, nem só de economia ou política vivemos, mesmo nós, economistas. A pequena história é de uma criança atormentada - mas não me queixo, de jeito nenhum. O que somos, senão o resultado de embates e sofrimentos que vivenciamos e superamos (ou não) desde a infância profunda? Dostoievski, defensor ardoroso das crianças, disse que o sofrimento delas é o argumento mais poderoso contra a existência de Deus. Deixo o leitor com a dúvida.

O ano é 1962. Brasília começava. Aos sete anos, estava matriculado em escola católica à beira do Lago Paranoá. Na época, as crianças faziam a 1ª comunhão nessa idade. Era acontecimento importante, antecedido de preparação. Aqui entra em cena um personagem que poderia ter saído do "Primo Basílio", do Eça de Queiroz: uma babá portuguesa, Maria Helena, perversa e que sabia apavorar com histórias fantasiosas. Maria Helena lançou a advertência sinistra: "A hóstia é o corpo de Cristo - se você mastigar, vai para o inferno!".

Instalou-se um drama que duraria vários anos. Outra criança poderia até tirar de letra. Eu não. Passei a viver um duplo problema - sofria com a ameaça levantada pela babá, mas tinha vergonha de estar sofrendo, e não conseguia falar com ninguém a respeito. Ainda ensaiei insinuar o problema à minha mãe: "Já sei como comungar sem mastigar a hóstia - vou engolir direto". Não deu certo; não percebeu a angústia do filho.

Chegou o dia - meninas e meninos, de branco, recebiam a 1ª comunhão, solenemente, das mãos do padre. Igreja lotada por familiares. Dei um vexame. Tentei engolir a hóstia e engasguei; tive que ser socorrido com tapas nas costas e outras providências. Pior: acabei mastigando a hóstia! Ao constrangimento público, somou-se o medo do inferno. A cada domingo, o mesmo drama.

Mudamos para Nova York (meu pai era diplomata) e a novela continuava. Tentava novas técnicas: por exemplo, deixar a hóstia dissolver, mas, nervoso, a boca ressecada, a hóstia acabava grudada no céu da boca! Passei a não me confessar para ter pretexto para não comungar. Mas fugir da confissão dava lugar a novos dramas de consciência.

Acredite, leitor, o problema, aparentemente ridículo, era enorme. Lembro da seguinte situação tragicômica quando nos mudamos para Ottawa, Canadá. Minha mãe, feliz anuncia que, em recepção diplomática, conhecera o Núncio Apostólico (embaixador da Santa Sé), Monsenhor Pignedoli: "Meu filho, você vai ser o coroinha nas missas que ele reza para o corpo diplomático todo domingo". Entrei em pânico. O coroinha é sempre o primeiro a comungar! Segundo minha mãe, Pignedoli era um possível futuro Papa, o que só aumentava a minha responsabilidade.

Tudo isso a criança enfrentava sozinha, já com dez ou 11 anos, sem coragem de compartilhar com ninguém. Mais tarde, ainda, em Ottawa, uma prima chamada Marília, de uns 18 ou 19 anos, passou um tempo lá em casa. Aproximei-me dela aos poucos e resolvi, então, abrir para ela o coração. Mas, inibido e envergonhado, com dificuldade de me expressar, não consegui transmitir à prima a dimensão do problema. Marília não deu bola. De volta ao Brasil, em 1968, ainda lembro dos padres do colégio Santo Inácio, no Rio, reclamando que eu era um dos poucos que nunca me confessava...

Minha mãe, para quem acabo de ler o artigo e que, em outros tempos, talvez discordasse veementemente, disse com um sorriso cético: "O passado somos nós que fabricamos, com as recordações que nos agradam ou não". E acrescentou: "Vão pensar que você está biruta".

*Economista, foi vice-presidente do NBD o banco dos BRICS, e diretor executivo no FMI pelo Brasil.

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