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Bolsonaro e a distopia

Gabriel Souza -
Ilustração página 9 edição 19 de fevereiro de 2019
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Era um cidadão comum, um jovem brasileiro que se indignava com o regime da ditadura militar que vigorava naquela época. Repudiava a truculência da repressão, se revoltava com a situação social, traduzida nas palavras do ditador de plantão: "A economia vai bem, mas o povo vai mal". Constatava que, a despeito do discurso moralizador dos ditadores, a grande corrupção grassava: Coroa-Brastel, Brasilinvest, Projeto Jari, Delfin, Capemi, Lutfalla, GE e outros. Eis que, ainda nos anos de chumbo, após acidente de carro o jovem entrou em coma e assim permaneceu até este mês de janeiro de 2019, quando acordou e surpreendentemente lúcido passou a tomar pé da história perdida. Primeiro lhe contaram da sina de Tancredo e do período Itamar. Quase sofre uma recaída ao saber da privataria tucana nos governos FHC que torrou empresas públicas no valor total de mais de R$ 660 bilhões, subavaliadas, as "contas escondidas" e avaliadores guindados a cargos de direção; e saber do Engavetador Geral da República; da isenção de imposto sobre lucros e dividendos decretada; da compra de votos; da blindagem perante MP e Judiciário.

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Ilustração página 9 edição 19 de fevereiro de 2019 (Foto: Gabriel Souza)

Devidamente socorrido da intercorrência foi recobrando o viço rapidamente ao se inteirar da fase dos governos Lula: o importante peso político internacional e a construção dos BRICs; os saltos: de 13ª para 6ª economia do mundo; gastos com saúde de R$ 28 para R$ 106 bi e com educação de R$ 17 para R$ 94 bi; salário mínimo de US$ 86,21 para US$ 305,00; taxa de pobreza reduzida de 34% para 15%; emprego de 627 mil/ano para 1,79 milhões/ano. E chorou sorrindo ao ouvir que 42 milhões de brasileiros saíram da miséria e 38 milhões ascenderam a um patamar da classe média, e ao saber dos programas sociais, da Transposição do São Francisco, do Pré-sal e de outras conquistas.

O paciente manteve o brilho nos olhos ao saber que o mesmo partido, o PT, responsável pelo novo cenário continuou governando por mais dois mandatos com Dilma. Mas começou a voltar à prostração ao saber do golpe do impeachment da presidenta, da degradação do Congresso, das pautas-bomba e da pressão pelo que depois foi concedido por Temer (4 bi em emendas num mês/perdão de dívidas de ruralistas e empresários/alta da gasolina etc.) e da nova onda neoliberal cortando direitos do trabalhador e da proteção social, e a avidez pelo que restou do patrimônio público, incluindo a Petrobras.

Nitidamente alquebrado, pôs-se a tremer quando o enfermeiro falastrão contou-lhe que na eleição o candidato da esquerda, em segundo lugar, teve 47 milhões de votos (apenas 10,26% a menos que o eleito) e a soma de seus votos mais os nulos e brancos mostrou que 54,44% não queriam o atual eleito. Arrasado, segurou o choro ao refletir e concluir: "Triste, mas pelo menos agora não temos militares no poder e a corrupção deve estar sob controle".

Foi então que lhe contaram que o partido de sustentação da ditadura, a Arena, transmutou-se nesses anos no PFL e depois no atual DEM e hoje quadros seus comandam o Senado e a Câmara. Depois contaram que o presidente eleito é um ex-capitão linha dura do Exército, e que um terço (7) do atual ministério é composto de militares e há 100 deles em cargos no governo, 47 em cargos estratégicos.

Apesar de seu estado crítico, incautos fizeram-no saber ainda que o presidente recém-empossado e seu filho terão que explicar as ligações com as milícias do RJ. Jair, Adriano Gordinho, Ronald Tartaruga, Flávio, Fabrício, Escritório do Crime, grupo de extermínio, milícias, extorsão, Raimunda, Danielle, Nathália, Alan, Alex, Valdenice, décadas de amizade, homenagens e medalhas, Coaf, lavagem de dinheiro, pagamentos e recebimentos milionários atípicos (sabidos, 1,2 milhão/96 mil/40 mil/7 milhões) são personagens e lances dessa novela política sinistra. Jair, desde 2008, defende a atuação desses grupos criminosos das milícias, como as de Rio das Pedras e Muzema, comandadas por ex-policiais com ligações perigosas com os Bolsonaros.

O coração do paciente disparou ao saber também que o ministério atual abriga diversos investigados e bufões, reis do riso das redes sociais, a Damares, o colombiano da Educação e o Ernesto do Itamaraty. A gota d'água foi saber que no novo congresso a segunda maior bancada é do partido do presidente e que as alianças em curso tendem a viabilizar as políticas de relaxamento da fiscalização da proteção do meio ambiente, de agrotóxicos e transgênicos, mineradoras genocidas, além do empoderamento de endiabradas seitas neopentecostais, venda do patrimônio público, manutenção da tributação regressiva, terceirização e corte de direitos e programas sociais dos mais pobres. Diante do quadro decidiram não contar sobre o assassinato da juíza Patrícia Acioli, de Marielle e a fuga de Jean Wyllys, nem dos genocídios e devastação ambiental da Vale. Nem se falou dos operadores da Justiça nesse concerto obscurantista contra o pré-candidato que despontava como vencedor no primeiro turno. O doutor assegurou que isso seria letal.

Embora com as funções vitais em queda acentuada o rapaz ainda respirava. Com voz rouca, quase inaudível perguntou: "Mas, afinal, o vice-presidente poderá assumir, quem é ele, há salvação?" Então lhe contaram que se trata de um general, bem afinado com as ideias do presidente e que em passado recente falou com naturalidade em intervenção militar, falou de nova Constituinte composta de notáveis e não de congressistas eleitos, elogiou o torturador Ustra, falou da indolência dos indígenas, da malandragem dos negros, da beleza (do neto) advinda do branqueamento da pele, da tendência dos órfãos para o crime e, disse também, ser a favor de acabar com o décimo terceiro salário, essa "jabuticaba" brasileira. Foi um infarto fulminante.

* Sociólogo