O azul, o rosa e a metáfora

Por LÍDICE LEÃO*

O ano começou com uma polêmica que vai muito além das cores. Quando a ministra anunciou a chegada de “uma nova era”, em que “menino veste azul e menina veste rosa” foi alvo de uma avalanche de críticas nas redes sociais. O conteúdo dessas críticas todos aqui já conhecem graças, também, à repercussão gigantesca na imprensa nacional e mundial. Para explicar a declaração barulhenta, a ministra justificou que não havia determinado a cor da roupa de ninguém. Apenas usara uma metáfora “contra a ideologia de gênero”. Ah, bom. Que susto. Então meninas podem usar azul e meninos podem vestir rosa, ou melhor, meninos e meninas podem se cobrir de qualquer cor. Que alívio, foi só uma metáfora “contra a ideologia de gênero”. “Ideologia de gênero”, termo tão propagado e satanizado em declarações feitas em emissoras de TV e mídias sociais nos primeiros dias do ano. O combate à tal “ideologia de gênero” está em todas as bandeiras levantadas pelos novos comandantes. E no vídeo que correu mundo veio em forma de metáfora. Será que é aí que mora o perigo? Analisemos: alguém colocou a palavra “ideologia” na frente do gênero, mas o termo “ideologia de gênero” não faz sentido algum! Ideologia, em linhas gerais, é o conjunto de ideias que formam o pensamento de alguém. A palavra tem forte ligação com o marxismo, que define como “ideologia burguesa” o sistema de ideias que legitima o poder econômico da classe dominante. O que esse conceito tem a ver com “gênero” é o que o exército conservador precisa explicar para as pessoas que simplesmente não se reconhecem no sexo biológico com o qual nasceram. Quando afirma que usou uma metáfora, a ministra teria declarado que a “nova era” pretende “combater” o desejo e a decisão das pessoas que, sem prejudicar ninguém, mudam de gênero para que se sintam adequadas no próprio corpo e no mundo? Que mudam de gênero para que sejam felizes? Não, é claro que não. Trata-se de uma decisão tão individual. Existem problemas muito maiores a serem combatidos: os casos de feminicídio, de violência doméstica, os casamentos infantis em que as meninas são potenciais vítimas de seus maridos-agressores, os crimes de pedofilia, muitos dentro do que deveria ser um lar. É claro que os novos comandantes sabem disso. Mas preocupada, muito preocupada, informo que esta afirmação vem carregada de ironia.

Noves fora a escolha de gênero – aqui o assunto será tratado dessa forma, simples assim, e não como uma fictícia ideologia – a “metáfora” sobre o rosa e o azul pode dizer muito mais do que o ser “contra a ideologia de gênero”. Quem ouviu pode achar que a ministra – inconscientemente, claro – associa a cor rosa ao “ser princesa”, ao ser “boazinha”, ao “se comportar bem”, ao “ser bela, recatada e do lar”. Tudo para agradar os “príncipes que vestem azul”, os “machos viris”, os “seguros de si”, os “fortes”. Mas é claro que tudo isso “pode” ser interpretado por quem ouviu ou assistiu ao vídeo, provavelmente pelas feministas doutrinadoras e mal-amadas. E pelos comunistas que torcem contra a “nova era”. Não foi nada disso o que ela quis dizer. Afinal, estamos em 2019, século vinte e um, época de progresso e evolução, em que esse determinismo todo já ficou para trás. Além do desenvolvimento já atingido nas mais diferentes áreas, falamos de um país sem vocação alguma para o fundamentalismo religioso que, aliás, nunca fez parte da nossa história. Esse negócio de perseguição, ódio e declarações “terrivelmente” religiosas só acontece lá para os lados do Oriente Médio, Ásia Central e norte da África. Vivemos em um país laico.

Feliz 2019 a todos! Sem ironia e sem metáfora.

* Jornalista e mestranda em Psicologia Social pela USP

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