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Neoliberalismo de esquerda

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Quando se fala em acabar com o socialismo no Brasil, essa afirmação só pode ser entendida como uma figura de retórica ou de propaganda política, pois ao longo de toda a nossa história republicana estivemos longe de viver em um estado socialista. Por esparsos momentos experimentamos governos mais preocupados com as desigualdades e injustiças sociais.

O socialismo clássico se caracteriza como o Estado intervindo nos meios de produção, controlando preços e salários, interferindo na distribuição de renda e no equilíbrio da diferença de poder econômico entre classes sociais. Um Estado socialista pressupõe uma economia planificada com a estatização da produção, eliminando ou reduzindo o papel da propriedade privada.

A compreensão de um novo socialismo democrático, após o debacle da antiga URSS, flexibilizou alguns desses princípios: admite-se a existência da iniciativa privada; requalifica-se o papel do Estado para menos centralizador; reconhece-se a pluralidade de partidos políticos; aceita-se a sociedade de classes, sem que haja opressão de uma sobre a outra. Enfim, um socialismo humanista que se contraponha ao capitalismo que privilegia os bens materiais e valores individuais em oposição aos coletivos.

Como diz Bobbio, um socialismo que procure construir o “ethos da igualdade”, pois cabe à esquerda combater as desigualdades que as sociedades produzem. Ainda assim, um socialismo desse tipo jamais existiu em nosso país. Para alguns estudiosos, o que de fato foi praticado pelas forças progressistas no poder poderia ser denominado neoliberalismo de esquerda, a despeito dos inegáveis avanços sociais e mudanças comportamentais inovadoras, mas muito aquém das transformações econômicas ditas socialistas.

Os governos de Fernando Henrique Cardoso, oriundo da esquerda social-democrata, e o de Felipe González, do Partido Socialista Operário, inseriram seus respectivos países em um capitalismo liberal moderno, integrando-os na economia global. O primeiro governo Lula deu continuidade a política econômica de FHC, comandada então por Palocci, em coerência com os termos da Carta ao Povo Brasileiro, honrando, assim, o pacto pré-eleitoral firmado com as classes produtivas. O próprio vice-presidente da chapa nos dois mandatos era um quadro político originário desse segmento social.

Com a economia global estável, Lula se consolidou como um dos mais expressivos líderes da esquerda mundial. O seu governo marcou avanços em programas sociais ancorados numa ortodoxia econômica que não desagradou ao capital transnacional, às forças produtivas nacionais e em especial aos banqueiros. Já no segundo mandato de Lula, como no de sua sucessora Dilma, embalados por altos índices de popularidade, os governos se afastaram um pouco da ortodoxia de Palocci. Tentou-se uma nova matriz econômica em que o Estado e não o mercado comandasse a economia. O projeto de construção do estado de bem estar social, entretanto, permaneceu dentro dos parâmetros de uma economia capitalista liberal.

O recrudescimento da crise internacional, refletindo principalmente no mercado de commodities, aprofundou a instabilidade econômica interna, levando Dilma, no seu segundo mandato, a convocar Joaquim Levy, economista liberal da Escola de Chicago, para tranquilizar o mercado. As tensões sociais e políticas acabaram desaguando no impeachment.

O que se procura sustentar neste artigo é a tese de que as forças progressistas, ao assumirem o poder, não tinham em sua pauta política a mudança estrutural da sociedade brasileira em direção ao socialismo. Para alguns militantes, por submissão intelectual ao liberalismo. Para outros, pela avaliação da correlação de forças desfavorável naquele momento político, o que talvez explique o temor da direita a uma suposta guerra de posição gramsciana na cultura, ensino e costumes.

Enquanto novos e transformadores projetos políticos não sejam criados pelo gênio humano para a solução dos contínuos conflitos sociais é necessário que essa dualidade entre capitalismo e socialismo permaneça, pois sua existência é a garantia do contraponto à prevalência, em qualquer um dos dois casos, do autoritarismo de um pensamento único.

* Arquiteto e urbanista