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Mulheres de bem

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Salão de beleza, cena 1: três mulheres conversam sobre o médium João de Deus, alvo de seiscentas denúncias que englobam abuso sexual, estupro de vulnerável e outros tipos de violência. No começo de janeiro, o acusado virou réu e, ainda esta semana, o Ministério Público de Goiás fez nova denúncia que envolve mais cinco vítimas. Voltando à cena: as mulheres que estão no salão, cuidando de cabelos e unhas debatem o assunto. “Ah, não acredito que ele tenha cometido esses crimes. Até porque é um homem de quase 80 anos, coitado”. A outra: “Pois é, eu acho estranho esse barulho todo na mídia. Muito sensacionalismo”. A terceira: “Eu acho que essas mulheres fazem essas denúncias para aparecer.” De novo: “Eu acho que essas mulheres fazem essas denúncias para aparecer”.

Salão de beleza, cena 2: duas mulheres brancas falam sobre racismo. “Meu sobrinho de três anos é bem moreninho. Eu sempre brinquei com ele: vem aqui pra tia dar um tapa nesse bumbum neguinho, vem. Mas agora nem falo mais isso, porque podem me acusar de racismo, só de eu dizer bumbum neguinho”. A outra: “Concordo, hoje em dia qualquer brincadeira pode ser acusada de racismo! Temos que tomar muito cuidado com o que falamos. Agora, para os negros, tudo pode ser considerado racismo. Mas atualmente não existe mais isso, é todo mundo igual!”. O tom dela é bastante alterado, por isso usei a exclamação. A primeira mulher branca responde: “Claro, é só estudar e trabalhar sério. Tem um garoto negro, um adolescente, que trabalha com o meu marido, e sempre digo pra ele ‘estude, não fale gíria (oi?), trabalhe muito que você consegue vencer na vida. Não é porque você é negro que você não vai vencer. Precisa estudar e trabalhar muito, como qualquer pessoa. E não falar gíria para não te confundirem com bandido (ah, entendi!)’”. A outra, sempre mais exaltada: “Isso mesmo! Esse negócio de racismo é coisa do Lula!”. De novo: “Esse negócio de racismo é coisa do Lula!”. Aí uma delas saiu para lavar os cabelos e o debate calcado em fortes argumentos foi encerrado.

Foram diálogos em dias diferentes, em salões diferentes. Eu prestei atenção em tudo e anotei no celular os trechos mais interessantes, transcritos acima. Mas teve mais. Teve a mulher loira dizendo que cresceu ouvindo os amigos a chamarem de “loira burra”, mas nunca se chateou nem acusou ninguém de racismo. Sempre levou na brincadeira. Foi a mesma mulher que afirmou, categórica e exaltada, que “esse negócio de racismo é coisa do Lula”. Sem comentários.

Resolvi escrever hoje sobre essas duas cenas do cotidiano de uma mulher comum de classe média comum e desviar um pouco das reflexões sobre feminismo, machismo, patriarcado, feminicídio – que, aliás, já começou o ano com números assustadoramente altos –, filosofia, psicologia social, estudos sobre a questão do poder e do discurso, para mostrar aos leitores o que acontece fora da bolha. Para explanar como pensam e o que dizem as “mulheres de bem”, que trabalham ou têm maridos que trabalham, cuidam dos filhos, da família e vão ao salão de beleza aos finais de semana. Tudo bem que são apenas duas cenas, com a participação de apenas cinco mulheres, o que não pode ser considerado um retrato das clientes de salões pelo país. Mas como esse texto não é uma pesquisa mercadológica ou acadêmica, podemos citar esses debates acalorados e cheios de argumentos lógicos como parte do pensamento das mulheres de bem.

Precisamos sair da bolha às vezes para entender o atual momento do país, resultado de uma eleição direta.

* Jornalista e mestranda em Psicologia Social pela USP

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artigo | mulher