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Liberação das armas: uma reflexão teológica

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Em 2005, chorei e lamentei o resultado do plebiscito. Depois de lutar em várias frentes pelo fim da liberação do posse de armas e de sua comercialização, tive que amargar, junto com outros tantos, a derrota por larga margem. Os que defendiam a comercialização de armas e sua posse venceram.

Agora, o presidente assina o decreto que legitima não só a posse de arma, chegando a facultar a uma mesma pessoa possuir até quatro armas de fogo. O choro e o lamento recrudescem com mais força. Parece que o Brasil caminha cada vez mais célere em direção a converter-se em um país bélico e violento.

São de impressionar os argumentos para o decreto que legitima posse de armas. Embora os defensores desta medida digam ser uma iniciativa que mitigará a violência, isso é conhecido e largamente desmentido por todas as estatísticas. Mais armas geram mais violência e também mais mortes. Que o digam as mulheres, cujos assassinatos proliferam exponencialmente no país e que agora terão que conviver com companheiros não apenas violentos e agressivos, mas armados. As mortes de mulheres certamente vão aumentar no Brasil com essa medida.

Mas há mais: armas de fogo, letais e mortíferas, são comparadas a carros, que podem ter acidentes, e a liquidificadores, que podem machucar dedos de crianças. Creio que há uma profunda diferença entre os objetos comparados aqui. Um carro tem a finalidade de transportar. Se mal dirigido ou se abalroado por outro veículo ou qualquer outra causa, pode sofrer um acidente e eventualmente provocar ferimentos e morte. Um liquidificador é um eletrodoméstico que tem a finalidade de fazer sucos ou vitaminas com vários legumes ou sopas etc. Eventualmente, se uma criança escapa do controle da mãe ou do responsável e coloca o dedo em seu motor, pode machucar-se.

Já arma de fogo tem como finalidade ferir e matar. Este é o seu objetivo e para isso será usada. Quando portada por um adulto, pode atirar em legítima defesa ou por vingança, ou outro qualquer motivo. Mas quando manipulada por uma criança, pode transformar o que era uma inocente brincadeira em uma tragédia sem tamanho. Não pretendo aqui repetir as inúmeras análises já feitas brilhantemente por tantos jornalistas e comentaristas das mais diversas áreas. Restrinjo-me à minha área de conhecimento, que é a teologia cristã. E pergunto: como pode um governo que tanto valoriza o Evangelho, que reivindica em várias situações e várias instâncias o respaldo de Deus para suas decisões e ações, tomar medidas que vão em direção contrária a tudo que a Palavra de Deus proclama com força e insistência? A liberação da posse de armas contraria as propostas mais centrais do Evangelho de Jesus e, portanto, da Bíblia cristã.

O uso de armas, quaisquer que sejam elas, sempre foi questionado pelo Deus da Revelação cristã e radicalmente condenado por Jesus de Nazaré, em quem os cristãos reconhecem o Filho de Deus e Deus mesmo. Em momento algum de sua pregação e ministério, Jesus solicitou ou permitiu aos que o seguiam como discípulos que apelassem para a violência. No Jardim das Oliveiras, já bem próximo à sua prisão, o Mestre repreendeu a atitude dos discípulos que faziam uso da espada. E esse texto se encontra em mais de um evangelho: “Embainha a tua espada”, diz João 18,10; “pois todos os que tomam a espada morrerão pela espada”, dirá Mateus 26,52. A mensagem é clara: não pode ser instrumento de salvação o que traz a morte.

Muito significativa ainda é a atitude de Jesus relatada apenas em Lucas 22,49-51: diante da pergunta dos seus, “Senhor, devemos ferir com a espada?”. E, à ação de usá-la decepando a orelha do soldado romano, Jesus respondeu curando o que foi ferido, mesmo sendo um “inimigo”. Trata-se de reação não apenas de repreensão. Mais ainda: de reparação que o Mestre, às portas da morte, assumiu diante da tentativa de violência praticada por um dos discípulos. Com isso vemos o Evangelho dizendo: não basta não concordar com a violência e não portar instrumentos que a provoquem e efetuem; é necessário reparar seus danos, curar suas feridas. Jesus diz “Basta”. Trata-se aqui de um “basta” a toda e qualquer tentativa de violência, mesmo que seja na melhor das intenções, que no caso dos discípulos, era de salvar o Mestre dos soldados que vinham prendê-lo.

A mim, particularmente, em todos os episódios que antecederam a assinatura do decreto, chocou-me a atitude de padres que defendem o porte de armas e que entram em escolas de tiro para aprender a usá-las. Argumentam que atirar em legítima defesa é moral, porque mata não um inocente, mas um agressor. E exortam os fiéis a liberar-se do complexo de culpa e da ideologia pacifista.

Com todo respeito, creio que sobre isso o Evangelho é bem claro. Para um cristão, a violência não se justifica nunca. E se queremos – como é fato – que a segurança e a paz reinem em nosso país, o caminho certamente não é o de facilitar venda e posse de armas. Mas sim trabalhar para que haja mais justiça, a fim de que haja menos violência. Como já dizia São Paulo VI: “O desenvolvimento é o novo nome da paz. Justiça e paz andam de mãos dadas e não se pode construir uma sem a outra”.

* Professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de “Mística e testemunho em Koinonia” (Editora Paulus)

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