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Novamente, chama-me atenção um artigo desta coluna do JB, dessa vez “A insuperável lição iluminista”, da professora de filosofia Flavia Bruno, publicado em 03/01/19, que fala da liberdade de pensar do homem defendida pelo movimento Iluminista. Nesses tempos de “Efeito Manada”, de negação da verdade e/ou de “faremos tudo o que seu mestre mandar”, vale a reflexão.

Diz a autora: “A filosofia está sempre por bradar o grito iluminista e ensina que o homem não tem apenas a possibilidade, não tem apenas o direito, mas tem a necessidade de uma liberdade absoluta e irrestrita em todo exercício de pensar”. Diz ainda que “sendo por todo lado instado a obedecer, esse homem não pode ser livre”. Então, já que se trata de direito e necessidade, é preciso desobedecer.

Os iluministas defendiam que os homens conseguem tornar este mundo melhor através do pensamento introspectivo, do exercício pleno de suas capacidades e do engajamento político-social. Segundo Immanuel Kant, o Iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma sujeição que estes impuseram a si mesmos. Tenha coragem de fazer uso da sua própria razão (Sapere aude!) é o lema do Iluminismo.

Vindo a calhar, uma postagem no Facebook faz referência ao “Mito da Caverna”, de Platão, dizendo que se alguém fizesse uma autocrítica e saísse das redes sociais, fosse “lá fora” conferir a realidade e depois retornasse contando o que viu, não teria crédito algum. Nada do que descrevesse soaria como verdadeiro. Isso significa que estamos sendo forçados à banalização e à uniformização do pensamento. Ninguém mais pensa fora do Facebook, que se constitui numa espécie de caverna de Platão virtual. Não por acaso, o Iluminismo é conhecido como Século das Luzes.

O texto de Flavia Bruno, ao nos convocar a soltar as amarras do pensamento, nos orienta automaticamente no sentido de que o ato de pensar precisa ser precursor e estimulador da ação, até porque, além do pensar, os iluministas propunham atitude. Pensar com sabedoria nos fortalece a convicção de que estar no mundo (e tomá-lo para si na justa medida) é um direito natural, o que nos pode levar a não compactuar e não aceitar injustiças, daí o seu cerceamento imposto de todas as formas pelas armadilhas que se configuram em verdadeiras lavagens cerebrais promovidas pelo sistema.

Eis uma delas, bastante atual, um paradigma difícil de quebrar: tecendo críticas ao domínio do mainstream musical pela música descartável (ou descerebrada) que hoje é oferecida em massa à juventude, já que alguns defendiam que quem a escuta o faz porque gosta, alguém nos perguntou de repente numa roda de conversa se cachorro gosta de osso. Bem, pelo menos os vira-latas parecem gostar, responderam, surpresos, alguns de nós. Esse alguém retrucou: “Nada disso. Deem filé mignon para ele comer durante uma semana, deixem-no sentir o gostinho, depois coloquem o osso ao lado do filé e confiram qual ele vai escolher”. Segundo o crítico, a experiência teria êxito também com a tal música descerebrada.

Sem nenhuma embromação, foi-nos dado um belo exemplo de alienação pela cultura, do “homem sendo instado a obedecer” pela in(di)gestão de doses maciças de música e letras de baixíssima qualidade que contribuem (e muito) para inviabilizar o exercício do (bem) pensar, desvendar e, portanto, tomar conhecimento e posse. Cultura rasteira, pensamentos rasteiros, efemeridade nas ações.

Voltando à filosofia, recordemos que Jean-Paul Sartre disse que a existência precede a essência. Aceitando a premissa de Sartre, somos então, em nossa relação com o mundo, absolutamente responsáveis pelo que fazemos de nossas vidas. Mais do que termos direito, estamos condenados à liberdade. Portanto, a verdadeira aventura humana é a aventura do conhecimento. O nosso pecado original é, na verdade, o salto que demos para a cultura; e como agimos no mundo a partir daí.

A autora termina seu artigo dizendo: “Ter a coragem de ser autônomo no pensamento sem que este esteja submetido a nenhuma autoridade, a nenhum conteúdo, a nenhuma doutrina – eis o que marca a atitude filosófica”.

Pois pensando com autonomia, neste exato momento, eu diria que a liberdade no pensar deve ser inalienavelmente traduzida em ação sobre o mundo, em poiesis, em luta, revolução cultural, trabalho, que diferentemente do que considera o capitalismo irresponsável que nos leva cada vez mais para o consumo turbinado, portanto, para a coisificação de tudo e de todos, constitui-se essencialmente em instrumento de mudança do mundo para melhor.

Como disse René Descartes, penso, logo existo; ou não?

* Jornalista, ex-secretário de Cultura e Turismo de Cataguases

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