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Frankenstein e a princesa da paleontologia

Reprodução -
Frankenstein e a princesa da paleontologia
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Shelley e Anning: duas Marys na Inglaterra vitoriana. A primeira, escritora, concebeu uma das obras universais da literatura, “Frankenstein ou Prometeu moderno”. A segunda, menos conhecida do público de hoje, nasceu dois anos depois da literata, e foi uma das precursoras da ciência paleontológica. A vida de Anning bem poderia ser uma história inventada na imaginativa cabeça de Shelley: Era uma vez Mary, assim batizada em homenagem à pequena irmã, morta em um incêndio doméstico. Ao lado do pai, catava conchas e dentes de animais na praia para vender aos turistas e sustentar a família. Ao completar 11 anos, ele despencou de um penhasco à beira mar e faleceu mais adiante em consequência da queda. Deixou dois filhos e muitas dívidas. A menina Mary Anning continuou a vasculhar o perigoso litoral rochoso e, com a mãe, abriu uma loja de variedades, na sala de casa, onde vendiam fósseis, considerados objetos misteriosos naquele tempo...

Macaque in the trees
Frankenstein e a princesa da paleontologia (Foto: Reprodução)

Em uma de suas investidas, desenterrou o primeiro fóssil completo de um antigo réptil marinho, o ictiossauro, jamais visto antes àquela altura. Seus estudos contribuíram para comprovar que, diferentemente da mentalidade reinante da época, as espécies poderiam ser extintas. Esta seria uma concepção drástica para os valores cristãos daquele tempo. Como supor que alguma criatura pudesse desaparecer se todas foram concebidas por um Deus generoso e perfeito? Um colecionador comprou a descoberta de Mary e a expôs ao público e estudiosos, atraindo a atenção da comunidade científica e da Sociedade Geológica de Londres (SGL). O achado era evidência contrária ao que a igreja pregava e a partir das pesquisas realizadas em torno da descoberta da menina, os cientistas buscavam consolidar argumentos para suas teorias. No entanto, não apenas a classe social à qual pertencia ou a pouca educação formal que recebeu, mas também, e talvez principalmente, o fato de ser mulher em um mundo dominado por prósperos senhores anglicanos, estorvou o justo reconhecimento dos estudos de Anning.

Shelley também foi precoce. Aos 19 anos escreveu a versão preliminar de uma das mais icônicas histórias de terror, correspondendo ao desafio literário que consistia em escrever a mais arrepiante das tramas. A provocação foi feita por ninguém menos que Lord Byron, na intimidade dos aposentos do poeta romântico. Assim nasciam o Doutor Victor Frankenstein e a monstruosa criatura que se confundem em enredo que mescla aspectos góticos, o grotesco, referências ao mundo grego e nos atordoa até os dias atuais com incontáveis questões. A responsabilidade na aplicação dos conhecimentos, a arrogância e orgulho intelectuais ou mesmo a desmesura do saber estão entre os questionamentos suscitados pelo livro que vem sendo lido por gerações há dois séculos e é considerado a primeira obra de ficção científica. No campo das ciências, o século 19, além dos caminhos que apontavam para a emergência de uma nova ciência, a Paleontologia, havia discussão importante acerca dos estudos de Benjamin Franklin e aplicações da corrente elétrica, avanços notáveis na medicina e a tecnologia encontrava-se em intenso processo de criação e renovação. Shelley dialoga com seu tempo e insere componentes da revolução tecnológica em sua criação.

Assim como a vida de Anning, a de Shelley conteve episódios dignos da criação de um intenso folhetim, incluindo a fuga com o poeta Percy Shelley, o provável suicídio da primeira esposa dele, e a morte de uma meia-irmã. Tal qual Anning, Shelley perdeu um dos pais precocemente. Aos 11 dias de idade, a mãe da futura escritora, Mary Wollstonecraft, defensora da igualdade entre homens e mulheres em pleno século 18, faleceu, mas permaneceram os escritos maternos que a influenciariam por toda vida. Afastando as duas protagonistas deste texto, destaca-se que Shelley desfrutou de ambiente favorável ao desenvolvimento artístico e intelectual, chegando a conviver com figuras ilustres da época e pais letrados. Ao contrário de Anning, que se viu na incumbência de garantir a subsistência da família e na condição de provar que não era, simplesmente, uma criança sortuda que encontrava fósseis.

O fato é que, apesar de autodidata, ela havia se transformado em uma especialista que, a partir de seus achados, desenvolveu técnicas de escavação e limpeza para removê-los intactos, realizou dissecações em sua modesta cozinha e, com isso, criou bases para a Paleontologia e a compreensão da história do Planeta Terra. Mary Shelley foi reconhecida como grande romancista ainda viva, mas sua primeira publicação foi anônima por ser ela... mulher. Faleceu aos 53 anos, acometida de câncer no cérebro. Mary Anning foi diagnosticada com câncer de mama e viveu até os 48 anos. Somente após sua morte, a SGL a honrou em um discurso. O que essas moças inspiradoras nos fazem perguntar é: quando chegará o dia em que ser mulher não será definidor de nada a priori? Quando compreenderão que, independente dos cada vez mais múltiplos gêneros que possamos pertencer, somos pessoas e que, como tal, merecemos e exigimos o direito de existir em plenitude. Não se é feliz pela metade...

* Artista profissional, mestre em Teatro e doutora em Ciências