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Lista negra da Receita Federal

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Adaptando aos trópicos a frase de Shakespeare em “Hamlet”: há algo de podre na República Federativa do Brasil. Desde meados de 2013 o país vive uma perigosa instabilidade institucional, em que os poderes da República se confundem e a Constituição parece ter se tornado – como nas palavras do jurista alemão Ferdinand Lassalle – um reles pedaço de papel, sem conexão com a realidade.

Dentre os atos estatais que fazem letra morta ao texto constitucional, destaca-se a recente publicação da Portaria RFB nº 1.750/2018, que prevê a divulgação – no próprio site da Receita – de absurda “lista negra” de empresários que, segundo o Fisco, poderiam ter praticado crimes. Segundo essa inconstitucional portaria, com efeito, a Receita poderá, mesmo antes de instaurado qualquer procedimento penal pelos órgãos competentes (Ministério Público ou polícia), divulgar lista com informações de empresas e pessoas físicas que o Fisco reputar terem praticado crime tributários, previdenciários, de descaminho, de contrabando, entre outros.

Ou seja, logo após elaborar representações fiscais para fins penais e encaminhá-las ao MP para a devida investigação, a Receita já tornará público seu juízo sobre matéria criminal e exporá os supostos responsáveis.

Em suma, confere-se agora à Receita Federal o poder de condenar, por meio de absurda lista, sem processo administrativo, judicial, violando frontalmente a Constituição – especificamente do direito fundamental da presunção de inocência, previsto no artigo 5º, inciso LVII da Constituição de 1988.

Analisando tecnicamente o texto da portaria, verifica-se a previsão da divulgação no site da Receita das seguintes informações: “(I) o número do processo referente à representação; (II) o nome e número de inscrição no CPF ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) dos responsáveis pelos fatos que configuram o ilícito objeto da representação fiscal para fins penais; (III) o nome e número de inscrição no CNPJ das pessoas jurídicas relacionadas ao ato ou fato; (IV) a tipificação legal do ilícito penal objeto da representação fiscal para fins penais; e (V) a data de envio ao MPF”. Assim, a Receita faz tábula rasa do intocável direito fundamental do devido processo legal e da presunção de inocência.

Ao inverter a lógica do ordenamento jurídico, a referida portaria – norma inferior à Constituição –, divulga, como se culpados fossem, informações de empresas e indivíduos que nem foram investigados.

A afronta ignora a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cristalizada na Súmula Vinculante nº 24, sobre a consumação dos crimes tributários, que somente se efetivará após encerramento do processo administrativo fiscal, via lançamento do crédito tributário.

Contra a Carta Constitucional, o artigo 15, inciso II da mencionada portaria, prevê que a representação fiscal para fins penais será encaminhada ao MP – com a consequente divulgação das informações no site da Receita – mesmo em casos em que “a decisão administrativa definitiva referente a auto de infração não tenha resultado em exigência de crédito tributário”. Ou seja, de forma atônita, a Receita divulgará as informações em “lista negra” que fundamentaram a representação encaminhada ao MP, ainda que não haja crime.

A edição de portaria desse gênero lembra triste época em que escusos decretos inconstitucionais (com força de lei) eram editados por Hitler para suspender a efetividade dos direitos civis consagrados na Constituição de Weimar (1919). Neste caso, com as devidas proporções, pode-se falar de uma “lista de macarthismo empresarial”.

Como bem relembrou o ministro Alexandre de Moraes, citando Thomas Jefferson: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. Tenham absoluta convicção de que a vigilância e o abuso da portaria não passarão em branco. Conforme bem destaca o filosofo Sócrates, “os homens bons tem que obedecer as leis más, a fim de que os homens maus (que editaram absurdos como a famigerada portaria) obedeçam as leis boas”. No nosso caso, a nossa Constituição Cidadã.

* Advogado criminalista, doutor e mestre em Direito Penal pela Universidade de Coimbra

** Advogado criminalista, mestrando em Filosofia do Direito pela PUC de São Paulo