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João de Deus e a fragilidade feminina

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Treze mulheres disseram terem sido vítimas de abusos sexuais cometidos pelo médium João de Deus. Roger Abdelmassih cumpre em casa a pena de 278 anos à qual foi condenado pelo estupro de 52 mulheres e tentativa de atacar sexualmente outras 39. Nos dois casos, tratam-se de mulheres que passavam por situação de vulnerabilidade, que buscavam algum tipo de ajuda. Ao procurar João de Deus, cura ou conforto espiritual. Quando se dirigiam a Abdelmassih, o desejo da maternidade. Segundo relatos das vítimas, os dois homens se aproveitavam da fragilidade física e emocional do momento para praticar as monstruosidades. Além da questão de caráter, os homens que praticam tal violência são movidos pelo machismo. Pela certeza de que os corpos femininos que estão ali, na frente deles, naquele momento, são de propriedade deles, o que lhes conferem o “direito” de fazer com eles o que bem quiserem. Está aí o machismo estrutural, orgânico, enraizado numa sociedade patriarcal, em que funcionários e parceiros profissionais dos homens acusados são capazes de acobertar os crimes relatados pelas vítimas.

Não está em questão aqui abordar a tão cultivada “fragilidade” feminina, usada pela estrutura machista para inferiorizar as mulheres. Mulheres que devem ser defendidas, protegidas por serem frágeis. E que podem ser abusadas, atacadas por serem frágeis. Afinal, como escreveu a escritora nigeriana feminista Chimamanda Ngozi Adichie, “as mulheres não precisam ser defendidas e reverenciadas; só precisam ser tratadas como seres humanos iguais. Há uma conotação de superioridade na ideia de que as mulheres precisam ser defendidas e reverenciadas por serem mulheres”. De novo: as mulheres só precisam ser tratadas como seres humanos iguais. E se a suposta fragilidade feminina é usada para o cavalheirismo, é usada como trunfo para a prática de crimes sexuais.

Quando alguém acha que lida com um outro ser mais frágil, veste-se do poder que essa relação lhe confere. Recorrendo a Michel Foucault: no século 18 o controle do corpo alheio – que deveria ser disciplinado e dócil – fosse ele de um soldado ou escravo, era visto como sinônimo de poder. O corpo da mulher nem entrava em questão lá no século 18 porque já era, por si só, propriedade do homem. Porém, casos como os que envolvem Abdelmassih e as denúncias contra João de Deus mostram que os machistas ainda vivem com a cabeça na Idade Média: o sentimento de poder que têm em relação ao corpo da mulher lhes dá o direito de agredir, atacar, violentar.

Impossível não mencionar Simone de Beauvoir, que, citada na prova do Enem de 2015, foi alvo de ataques machistas. Uma das questões abordou a frase da filósofa existencialista “ninguém nasce mulher, torna-se mulher” e bastou para que o discurso conservador destilasse todo o seu ódio às discussões sobre gênero – os conservadores querendo ou não, a questão de gênero é real e já é discutida e vivida dentro e fora das escolas – e ao feminismo. À época, quando a escritora francesa cunhou a frase, ela só queria dizer que o “ser mulher” vai muito além da definição biológica, da fragilidade naturalizada e imposta. Que o “ser mulher” é construído na existência da mulher e na vida que ela escolhe ter. Que a mulher pode sim escolher não ser frágil como lhe é obrigado pela sociedade patriarcal e se tornar uma mulher forte. A frase foi escrita lá atrás, mas ainda é tão atual… E ainda é alvo de tantos ataques. Ou seja: o machismo estrutural ainda é algo tão premente!

Para concluir: enquanto a mulher for vista, tratada e pensada como frágil – uma das premissas do machismo – os autores de crimes de violência contra ela se sentirão credenciados a tais práticas, visto que a fragilidade pressupõe submissão e a força, poder.

* Jornalista e mestranda em Psicologia Social pela USP