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Dilema moral na sociedade brasileira

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Patriarcalismo é um sistema de poder autoritário e centralizado nas figuras masculinas das elites dirigentes ou de uma única pessoa (o rei, o senhor feudal, o patriarca), que reunia poderes absolutos sobre famílias, terras e riquezas. Com a modernidade europeia houve uma mudança no significado da autoridade absoluta, implicando certa despatriarcalização da sociedade pré-moderna. As alterações dos sentidos do poder provocaram o surgimento de um paternalismo capitalista (Sennett, Autoridade, 2001), que abrandou as influências das relações sanguíneas e patrimoniais tradicionais. Este paternalismo descontraiu a imagem atemorizante do pai tradicional para valorizar a imagem do “patrão” que é peça central no capitalismo emergente.

Fundamental para essa mudança do regime de poder foi a centralização da vida social no binômio capital x trabalho. A circulação livre do dinheiro liberou experiências de indivíduos e famílias para organizarem suas vidas assim como das classes sociais em torno das negociações por interesses salariais, sindicais, políticos e associativos. Expandiram-se lutas por direitos de cidadania: à vida, ao trabalho, à cultura, às novas subjetividades coletivas e individuais. Nas sociedades periféricas pós-coloniais, porém, a estruturação da vida social foi sempre problemática devido a fatores como desemprego, nacionalismo, racismo e diversidades étnicas. A expansão de uma cultura utilitarista e materialista, fundamental para o capitalismo industrial, conheceu resistências tanto das elites oligárquicas como das populações que eram alheias à disciplina metódica do trabalho produtivo herdada do protestantismo europeu.

No Brasil, neste século 21, a crise contribuiu para ampliar a violência resultante dos esforços de impor os códigos de uma sociedade utilitarista de consumo de massa sem oferecer, em paralelo, as condições materiais e simbólicas básicas para organizar a cidadania em larga escala. O aumento expressivo do número de desempregados tem deslocado o binômio capital x trabalho, abrindo espaço para outro binômio gerado pelo neopentecostalismo, aquele entre fé x prosperidade. A queda da atividade industrial e comercial e a concentração alarmante de riquezas ampliou o contingente de desempregados. Foram agravadas as condições de vida dos que já viviam nas margens da pobreza, atingindo inclusive as classes médias. Na falta de dinheiro em circulação para a geração de empregos, restou a fé na vontade divina como recurso para enfrentamento da precariedade material e da frustração política. A ação comunitária religiosa gerada pelo binômio fé x prosperidade compensou simbolicamente o desaparecimento das condições materiais e culturais de produção de uma cidadania ampliada pela expansão do trabalho produtivo.

Os impactos negativos da crise sobre as expectativas de uma cidadania ampliada não se fizeram esperar. Como resultado, o republicanismo democrático vem sendo substituído por um movimento de repatriarcalização que ocorre pela institucionalização de novos grupos étnicos legitimados em interpretações ortodoxas da Bíblia. No plano simbólico, a autoridade tradicional de Deus-Pai retorna para ocupar o vazio deixado pela falência do paternalismo capitalista. A Lava Jato favoreceu parte da sede de justiçamento. Prender indivíduos sem provas factuais, como é o caso de Lula, explica que o justiçamento se tornou mais importante que a justiça como dispositivo de aplicação do Bem e do Justo. O encarceramento de Lula não somente expõe a legalidade problemática de sua condenação, como já o explicaram grandes juristas nacionais e internacionais, como abre uma chaga no coração do Brasil. Como se explica que uma população que se diz cristã e que aprovou majoritariamente o governo de Lula, agora volta-se contra ele e o PT como se fossem figuras demoníacas a serem banidas? O investimento na política apareceu então, como estratégia central para transformar a crítica conservadora dos costumes num projeto de poder neopentecostal nacional.

Sendo o mercado neoliberal indiferente à questão social, a tendência é o aprofundamento da repatriarcalização. Este é o dilema do governo eleito. Para atender os reclamos das pressões religiosas conservadoras, a lógica do bom senso é comprometida nas pressões dos neopentecostais para intervir na política. Para minimizar essa tendência regressiva, o novo governo deveria considerar duas alternativas: relançar urgentemente os investimentos do Estado na economia, na infraestrutura e no social. Numa sociedade em que o poder estatal sempre teve papel central na modernização, as perspectivas equivocadas de substituir esse papel pelo mercado, que não planeja o futuro, tem claramente resultados funestos. A renda básica universal de cidadania poderia ser pensada como saída para assegurar a sobrevivência dos precarizados. A outra alternativa é a de apoio estratégico a redes de empreendedores criativos para desenvolver tecnologias sociais e econômicas, interagindo com as inovações globais. Tais empreendedores podem ser as bases para reorganização da cidadania ampliada, legitimando o pluralismo econômico, político e cultural.

* Professor de Sociologia da UFPE e ex-presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS)

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