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Ao longo do dia, as ciências e tecnologias perpassam nosso cotidiano de diversas maneiras. Acender o interruptor de nossas casas, realizar exames laboratoriais ou mesmo consultar a previsão do clima antes de sair porta afora, implica, em variados níveis, alguma modalidade de ciência. Entretanto, a maior parte da população leiga não domina os conteúdos e processos referentes às ações que exerce automaticamente. Ou seja, ao mesmo tempo em que as ciências são tão impositivas no dia a dia, parecem algo distanciado da realidade dos não especialistas, seja em função da complexidade de temas e abordagens ou mesmo devido aos discursos herméticos por meio dos quais a prática científica costuma ser registrada.

É em resposta ao panorama descrito acima que surgem estratégias educativas voltadas para divulgar ciência em linguagem acessível, buscando sua visibilidade e legitimidade junto ao público não especializado. No Brasil, desde as iniciativas seminais de popularização das ciências, vinculadas à chegada da família real, em 1808, até a inclusão, por parte do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, da produção em divulgação científica como critério para avaliação de pesquisadores, nos anos 2000, museus interativos, centros de ciências ou espetáculos teatrais com temática científica, por exemplo, vêm integrando amplo repertório de ações que objetiva difundir e problematizar o mundo científico.

Essencialmente, as atividades pretendem estimular o senso crítico e a democratização do conhecimento: condições basilares para equidade social. Portanto, não podem ser dispensadas. Contudo, até mesmo para garantir qualidade e continuidade, é preciso refletir sobre eventuais incoerências na prática das ações, que parecem reverberar nossa história cultural. A nefasta herança escravocrata do Brasil, por exemplo, talvez explique, em parte, a depreciação do trabalho manual e das tarefas braçais. Costuma-se aceitar pagar caro por itens materiais, enquanto os preços cobrados por serviços considerados menores, embora explicitamente fundamentais, tais como limpeza, carpintaria ou obra civil são barganhados.

Em um país onde, por séculos, o fato de não remunerar o trabalho braçal foi encarado como natural, a dicotomia e hierarquização entre “fazer e pensar” foram fortalecidas e incorporadas a diversos âmbitos sociais e povoam a mentalidade acadêmica. Observa-se que, mesmo entre os que se dedicam à divulgação científica, há os que se comportam como se, apenas a produção intelectual merecesse reconhecimento, minorando a importância dos que exercem funções menos teóricas. Assim, em grandes feiras de ciência ou simpósios, é mais comum do que deveria ser a separação entre os que, em tese, concebem e os que executam, e, por conseguinte, o status atribuído entre eles.

Trata-se de enorme equívoco interpretar as faculdades de pensar e agir como dois compartimentos estanques, assim como ignorar que a complementaridade entre conhecimentos e atuações de natureza distintas existe e é imprescindível para as construções coletivas e democráticas. Nesse cenário, destaca-se, também, a crescente preocupação com aspectos relacionados à inclusão e acessibilidade no planejamento das atividades de divulgação científica, buscando contemplar pessoas com as mais diferentes características, especificidades e limitações.

No entanto, aqui também vale ponderar: como, por exemplo, defender estratégias de acessibilidade em espaços de ciência, sejam elas estruturais, pedagógicas ou atitudinais, para mudos, se seus idealizadores, por vezes, sequer ouvem os falantes que estão ao seu lado tentando dizer algo? Como pensar em dinâmicas e materiais visando incluir cegos às visitas de espaços museais, se quem as concebe esquecer como se olha francamente nos olhos do vidente ao lado?

Acima de tudo, é preciso ter coerência entre o que se propaga e a forma de agir. O âmago da divulgação do conhecimento exige sensibilidade, sinceridade e conformidade entre fatos e ideias, pois são os exemplos poderosos instrumentos educativos, mais que as palavras. Divulgar ciência significa partilhar conteúdos, mas também, posturas e experiências de vida. E de que vale o aprendizado se não estiver destinado a estimular o que há de melhor em todos os envolvidos no processo de conhecer?

As ações que intentam a inclusão e diversidade requerem interlocutores com olhar generoso, que se estenda muito além dos índices de produtividade solicitados pelas agências de fomento. O modo de estar no mundo deve guardar equivalência com os discursos que produzimos e defendemos, caso contrário, principalmente no campo da troca dos saberes, trata-se de livre exercício de vaidade e egocentrismo, na exata contramão dos ideais genuínos de construção e multiplicação do conhecimento.

* Artista profissional, mestre em Teatro e doutora em Ciências