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De Pagu a Marielle

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Esta semana resolvi mergulhar na vida de uma escritora-artista brasileira, tão encantadora quanto as autoras europeias ou americanas que venho lendo: Patrícia Galvão, a Pagu. Tenho, em minha casa, o livro “Pagu, Vida-Obra”, organizado e escrito por Augusto de Campos. A publicação, de mais de 400 páginas, entrou na minha sala e foi direto para o móvel amarelo em que muitos livros aguardam para serem lidos e descansam após suas páginas passearem pelos nossos olhos. “Pagu, Vida-Obra” aguardava para ser visitado já há algum tempo. Talvez a sua imponência vermelha e densa intimidasse uma leitura mais disciplinada, permitindo apenas algumas consultas às fotos e manuscritos de Pagu. Mas esta semana… Não consegui escapar. Peguei a publicação, abri e não fechei mais.

O livro é um compilado de passagens pela vida da brasileira, emoldurado pela poesia de Augusto de Campos, ilustrado por fotografias da jovem de cabelos cacheados, armados e boca pintada com batom escuro. Logo na introdução, é impossível não identificar semelhanças já esperadas e dolorosas entre Patrícia Galvão, Virgínia Woolf e Sylvia Plath, autoras que tenho estudado com muito afinco, devido à genialidade fundida ao sofrimento comum a todas elas: mulheres à frente de seu tempo, cultas, inteligentes, criativas. Tomadas por sentimentos dúbios, entre a empolgação e a vontade de fazer, e a angústia, a ansiedade e o inconformismo pelo lugar que lhes era reservado no mundo.

O fato de serem mulheres, jovens, questionadoras pesava na vida pessoal e ficava estampado nas linhas que escreviam. Impressiona a última estrofe do poema “Natureza morta”, assinado por Solange Sohl, pseudônimo no qual Pagu se escondeu, talvez para gritar seu sofrimento sem correr o risco de ser julgada ao vivo e nas cores fortes com as quais se cobria:

“Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo.

Si eu ainda tivesse unhas

Enterraria os meus dedos nesse espaço branco

Vertem os meus olhos uma fumaça salgada

Este mar, este mar não escorre por minhas faces.

Estou com tanto frio, e não tenho ninguém…

Nem a presença dos corvos.”

Quanta dor! Quanto sofrimento! Quanta solidão! A reflexão é inevitável: por que a arte, a literatura, a independência feminina têm que estar obrigatoriamente ligadas ao sofrimento? Hoje, quando entrevisto mulheres que têm uma história de sucesso e se sobressaem em suas áreas de atuação, me chamam atenção as dificuldades, dores e lutas que todas elas enfrentaram para conquistar o lugar ao sol, longe da “presença dos corvos”. Chamam a minha atenção os olhos que lacrimejam em muitas delas ao narrar uma passagem que consideram vitoriosa em uma trajetória cheia de pedras e “fumaça salgada”.

Em um de seus escritos, Virginia Woolf aconselha as mulheres que querem escrever: “Bebam vinho e tenham um teto todo seu”, como forma de dizer: libertem-se! Em outras palavras, Pagu gritou: “Verdade e liberdade”, título de um livro que escreveu no período de sua militância política. Percebe-se a importância que a liberdade tem nas obras dessas mulheres-escritoras-artistas-feministas, de diferentes épocas, em diferentes lugares do mundo.

Hoje, muitas das mulheres já se dão o direito de beber vinho. Ter um teto todo seu ainda é um luxo entre as privilegiadas, de classe média e alta. Mas mesmo as ativistas geniais que têm a periferia e as comunidades como berço não se fazem de rogadas. Substituíram o “teto todo seu” pelos “coletivos” e seguem unidas na vida e na arte. Apesar de toda essa libertação, tudo ainda é muito difícil. Está aí o assassinato de Marielle Franco, há nove meses, sem esclarecimento, para provar toda a dificuldade existente no “ser mulher”.

* Jornalista e mestranda em Psicologia Social pela USP

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