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Onde está a razão jurídica?

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A missão e a função essencial do Judiciário é interpretar as leis dentro das regaras constitucionais e decidir, em consequência, os casos que lhe são postos. Em seu voto sobre a questão do indulto de Natal, o ministro Barroso afirmou que “o decreto aqui impugnado, contrariando a série histórica, reduziu o prazo”.

Decreto é ato do presidente da República, destinado a regulamentar e cumprir as leis e ao exercício das suas atribuições. A “série histórica” dos decretos significa a coletânea de atos dos presidentes da República. Por óbvio, nenhum presidente está limitado pelos atos de seus antecessores, portanto, não há “série histórica” que se imponha aos decretos do presidente.

Afirmou, ainda, o ministro, que “em quase toda a vigência da Constituição de 1988 sempre foi necessário ter cumprido ao menos um terço da pena para ser beneficiado”. Qual lei que assim determinou? Não informou o ministro, pois tal lei não existe. Existem os decretos da “série histórica” feitos pelos presidentes anteriores, que não obrigam o atual.

“Contra os órgãos técnicos, o ato presidencial pretendeu dar indulto a corruptos recém-condenados e liberá-los do pagamento da multa”, afirmou o ministro. Nenhum presidente é obrigado a seguir as opiniões dos órgãos técnicos; se fosse, perderia sua investidura.

“A competência para concessão do indulto [...] é ato discricionário, ninguém discute. Mas não o poder absoluto, acima da Constituição e das leis [...]”. Qual dispositivo da Constituição o decreto violou, qual lei desrespeitou? O ministro não apontou nenhuma.

“Minha decisão retoma o padrão de indulto que foi praticado na maior parte dos 30 anos de vigência da Constituição de 1988”. Padrão estabelecido pelos decretos dos presidentes anteriores. Nenhum juiz tem o poder de “estabelecer” ou “retomar” “o padrão de indulto”, pois isso é das atribuições do presidente, através dos decretos.

“A corrupção é um crime violento, praticado por gente perigosa. É um equívoco supor que não seja assim. A corrupção mata na fila do SUS, na falta de leitos, de medicamentos, nas estradas que não têm manutenção adequada. O fato de um corrupto não ver nos olhos a vítima que ele produz não o torna menos perigoso”, afirmou o ministro.

Tem razão, o ministro, sem dúvida. Análise correta, boa visão política. Mas essa não é uma razão jurídica que deve pautar as decisões de um magistrado. Para um juiz imputar um crime a alguém, ou restringir direitos em função de um crime, há de haver um fato concreto com vítima e autor identificados. Não pode ser por abstração, na generalidade. Cairíamos no absurdo, seria a negação do Estado de Direito.

Este é bem o reflexo de muitas decisões do Judiciário no Brasil dos últimos tempos. Os grandes pensadores sempre afirmaram que o poder de um juiz de prender ou soltar e de decretar perda de bens deve ser exercido dentro das leis feitas pelo Legislativo, outro poder ungido pelo voto popular; que, por sua vez, não pode prender nem soltar, pois já tem nas mãos o poder superior de fazer as leis; e o Executivo, que já tem em mãos o poder da espada e do tesouro, não pode ter o poder de prender nem de fazer as leis.

As razões de decidir de um juiz devem ser fundadas nos fatos e nas leis que devem ser aplicadas a tais fatos. Devem ser razões jurídicas. O Executivo e o Legislativo são depositários das razões e motivações políticas em função do voto e da investidura que receberam.

Tempos estranhos.

* Foi deputado federal Constituinte; professor aposentado da Unirio