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Mobilidade 4.0: um desafio para as metrópoles

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Em 2050, com 99 anos, espero estar vivo e lúcido para saber o que acertei e errei neste texto. Sou pesquisador, não sou futurólogo. E como pesquisador, entendo que estimar o futuro é importante para melhor organizar as coisas no presente.

A Indústria 4.0 é a nova forma de produzir, com forte uso de sistemas ciber-físicos, internet das coisas e computação em nuvem. E a mobilidade urbana se modificará, como se modificou com o que hoje chamaríamos de Indústria 1.0. Os transportes coletivos são a marca dessa mudança, resultado da criação de fábricas, separando a residência do trabalho. A Mobilidade 4.0 chega e vai se chocar com a Mobilidade 1.0.

Então, se o que bate à nossa porta se apresentando como possível ícone da Mobilidade 4.0 é veículo autônomo, cabe questionamento. Isso depende de como nossas cidades são e como se mobilizam agora para organizar seu futuro. Vejamos então algumas de suas características atuais para apoiar nossa futurologia.

As metrópoles brasileiras são espraiadas. E essa expansão é promovida por investimentos para os modos individuais motorizados, embora esses nem cheguem a 20% dos deslocamentos urbanos na RMRJ. Os modos coletivos respondem por 50%. E se contarmos só deslocamentos motorizados, os modos coletivos carregam 3 em cada 4 passageiros.

As cidades mudaram. Mudou também o complexo conjunto de origens e destinos das viagens. Hoje, 35% das viagens na RMRJ não têm origem nem destino na cidade do Rio. Há 40 anos eram apenas 13%. E contrariando uma imagem usual, apenas 25% das viagens internas à cidade do Rio se destinam ao Centro.

Apesar dessas mudanças, as redes de transporte público ainda são semelhantes às do passado: quase todas as linhas se dirigem ao Centro da cidade. A periferia está desconectada entre si. E a prioridade aos automóveis aumenta o tempo de viagem das camadas populares. A Região Leste da RMRJ é uma zona pobre, com quase 1,5 milhão de habitantes e entre 2002 e 2012, no sistema de transportes coletivos, as viagens longas, aquelas com mais de 2 horas de duração, aumentaram de 4% para 15%.

Nossas metrópoles são muito diferentes das ricas e espraiadas metrópoles norte-americanas, capazes de investimento em apoio ao veículo autônomo. São diferentes das asiáticas que, embora não ricas, são muito densas. Para essas esperam-se soluções com base em transportes coletivos e energia limpa. São distintas também das ricas e densas europeias, para as quais se espera a melhor combinação de tecnologia, de forma de uso e pagamento.

Nossas metrópoles não são nem ricas nem densas. Para acelerar os benefícios dessas novas tecnologias, e até mesmo o uso de veículos autônomos, algumas ações serão imprescindíveis.

Primeiramente, vincular os investimentos para uso das novas tecnologias aos objetivos urbanos e metropolitanos de desenvolvimento.

Segundo, reconhecer que o Sistema Público Coletivo de Transportes com Energia Limpa deverá ser nossa referência para as soluções Mobilidade 4.0. Isso significa entender que o veículo autônomo será parte da solução e não sua espinha dorsal. A oferta de serviços de transportes é a ferramenta principal. As redes locais e metropolitanas deverão ser reestruturadas em apoio ao desenvolvimento das novas centralidades para reduzir os deslocamentos ao centro metropolitano. Fazer das centralidades secundárias a primeira opção de atendimento e com isso reduzir distâncias, tempos e custos de viagem.

Na mesma diretriz, apoiar as viagens curtas em modos não motorizados e coletivos. A priorização das viagens longas tem inibindo o desenvolvimento das centralidades secundárias.

Por fim, mudança radical na política de financiamento. A frase do Papa Francisco é um sinal de alerta: “O barulho dos ricos silencia os pobres”. Abandonar a histórica política de cobrar de quem usa os transportes coletivos (os mais pobres) para cobrar de quem deles se beneficia, de acordo com o benefício recebido e respeitando sua capacidade de pagamento.

* Professor da Coppe/UFRJ