ASSINE
search button

Testando o Enem

Compartilhar

Encerrou-se na última semana mais um ciclo do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em sua edição de 2018, quando mais uma vez repetiram-se antigos vícios e evidenciaram-se traços de experimentação perigosa. De início, vale ressaltar que todo o escrutínio é pouco para um exame que pauta o rumo da educação básica no país e define o destino de milhões de jovens brasileiros anualmente, devendo ser encarado com a devida sobriedade e atenção pelo Poder Público.

Colocando à parte as discussões de cunho político sobre o conteúdo da prova – que, aliás, nem deveria ser do tipo que provoca esse debate, dado que aquilo que é ensinado nas escolas dificilmente deveria ser questionável a partir de um ponto de vista científico –, é preciso frisar que o Enem tem problemas estruturais e outros que são ainda mais recorrentes em suas edições.

Em qualquer país do mundo, com uma educação de excelência, um estudante que se prepara para cursar Medicina não tem seu destino decidido pelo seu talento com interpretação de texto, que no Enem é exigida em um nível muito acima do visto no ensino médio, do mesmo modo que um potencial profissional de Letras não é julgado pelo seu conhecimento das organelas celulares. Outrossim, agrupar Física, Química e Biologia como meras “Ciências da Natureza”, colocando sob a mesma categoria de avaliação os conhecimentos sobre “biomas” e “resistores elétricos” do candidato, é uma atrocidade sem tamanho tanto do ponto de vista avaliativo quanto lógico.

Como essa questão é resolvida nesses outros países? Da mesma maneira que já é resolvida em alguns vestibulares locais, como o da Uerj. No momento de sua inscrição no vestibular, o candidato não é condicionado a realizar uma prova geral, mas a optar por provas das disciplinas de seu curso de escolha, determinadas pela própria faculdade. Quer estudar Engenharia Mecânica? Faça uma prova de Matemática, Física e Redação. Ciências Humanas? Língua Portuguesa, História e Redação.

Outra característica dos vestibulares estrangeiros, ainda que de mais difícil realização nas terras tupiniquins, é a ocorrência de múltiplas aplicações por ano. É intensa a pressão psicológica imposta a um aluno que esteja dependendo exclusivamente do resultado de uma prova anual. E se estiver em um dia ruim? Resfriado? Congelado pela ansiedade? Uma prova diferente do esperado pode custar o sonho de um estudante que em outro caso estaria preparado. Por essa razão, certos países aplicam suas avaliações de duas a sete vezes ao ano, só se considerando o melhor resultado do candidato no momento de sua aplicação para a faculdade, reduzindo imensamente o estresse dos estudantes e minimizando os riscos de acidente.

Não obstante, qualquer professor que esteja acompanhando o Enem em suas últimas edições nota que a prova tem, a cada ano, passado por mudanças: e isso já um problema. Consistência é fundamental em qualquer avaliação, principalmente no exame mais importante do país. Esse texto reconhece a necessidade de mudanças, contudo, é completamente surreal que o estudante só as descubra quando está com a prova diante de si, assim como tenha que se preparar para um teste que varie de dificuldade aleatoriamente a cada ano, exigindo cada vez mais conteúdos que nem estão presentes na grade curricular do ensino médio ou nos livros distribuídos na rede pública, e com sua única indicação sendo um critério de interpretação dúbia, perdido em meio a centenas no edital da prova.

Na medida em que o Enem se distancia do que é ensinado obrigatoriamente nas escolas, quem estuda em instituição pública passa a sofrer uma desvantagem ainda maior, pois compete nas vagas amplas com o estudante da escola de elite que se especializou unicamente no vestibular. Desse modo, o Enem deixa de avaliar aptidão e passa a ser um portal seletivo que só admite um mínimo de estudantes cotistas, trabalhando meramente como um mecanismo de perpetuação da desigualdade social, mesmo de um ponto de vista liberal.

Do ponto de vista técnico, o exame também muitas vezes peca, contando com questões de interpretação ambígua, principalmente nas Ciências Humanas e Linguagens, que precisam ser tratadas com um cuidado adicional. Todavia, é impressionante que não seja discutido o coup de grâce do Enem no estudante: a Redação, que é um elemento fundamental para a sua aprovação em qualquer curso. Em trinta linhas, o aplicante deve dissertar sobre um tema selecionado e argumentar a favor de uma causa. Ao fim, este deve apresentar uma “Proposta de Intervenção” para a vicissitude, explicitando os órgãos que devem aplicar a determinada resposta. Sem embargo, é surreal que um estudante saído do ensino médio precise desenvolver uma solução para um problema que governantes por décadas não foram capazes de resolver, ainda mais em cerca de uma hora.

Ademais, a mais incômoda parte é que, desde que se cumpram os critérios exigidos, qualquer intervenção é válida, não obstante a custos de execução e impactos sociais. Diferentemente de vestibulares como a Fuvest, a redação do Enem desdobra-se em um jogo de pretensão, onde um estudante é obrigado a decorar um modelo de redação e fingir que acredita em uma solução para um problema, enquanto um corretor faz vista-grossa a dificuldades evidentes e avalia positivamente uma redação desinspirada que cumpre com os critérios exigidos. A redação é também outra barreira para escolas públicas, dado que, a menos que por atitude dos próprios docentes, não é trabalhada em sala de aula, muito menos nos modelos necessários para o Enem.

Mudanças são necessárias em muitas coisas, principalmente em nações como o Brasil, mas tais transformações devem ser conduzidas com prudência e seriedade, e não na forma de experimentalismo barato. Destarte, é mister que exemplos de sucesso sejam seguidos, substituindo dirigismos centrais da banca por um processo que consulte professores e alunos, trazendo a devida transparência ao conteúdo que será aplicado. Se o Enem fosse testado hoje, muitos estudantes dariam zero.

* Aluno da rede pública federal de ensino, 17 anos; prestou o Enem este ano