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Nada mudou, vamos mudar

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Em novembro de 1981 era celebrada, no Largo do Carmo, em Recife, a Missa dos Quilombos. Uma magistral obra empreendida por Dom Hélder Câmara, Pedro Tierra, Dom Pedro Casaldáliga e Milton Nascimento. A missa não era apenas simbólica – naquele mesmo local, em 1695, era exposta a cabeça de Zumbi dos Palmares e celebrada a carnificina negra que perduraria oficialmente no Brasil até 1888 –, o evento religioso era também militante e desafiador, tanto para a ordem política quanto para a eclesiástica.

A Missa dos Quilombos era contundente e ousada. Em sua apresentação, Dom Pedro Casaldáliga ousava dizer, em alto e bom tom, que “em nome de um Deus supostamente branco e colonizador, que nações cristãs têm adorado como se fosse o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, milhões de negros vêm sendo submetidos, durante séculos, à escravidão, ao desespero e à morte”. Suas palavras foram potencializadas pela histórica homilia de Dom José Maria Pires, apelidado de Dom Zumbi, que fazia um corte profundo no pretérito da instituição que nunca se levantou contra o cativeiro negro; ele afirmava: “houvesse a igreja da época marcado presença mais na Senzala do que na Casa Grande, mais nos Quilombos do que nas Cortes, outros teriam sido os rumos da História do Brasil desde os seus primórdios, outra teria sido a contribuição do negro ao nosso desenvolvimento”.

Mas se tal ato representava um ensaio revolucionário na conturbada história do Brasil e do movimento negro, ele sofreria dois abalos. Em 30 de setembro de 1982, aqui no “Jornal do Brasil”, uma foto ganhava destaque pelas lentes de Luiz Morier. Amarrados pelo pescoço com cordas, lembrando antigas correntes, sete homens, “todos negros”, eram conduzidos para a viatura da polícia com suas carteiras de trabalho em mãos. Em 11 de maio de 1988, ano de celebração do centenário da Lei Áurea, o movimento negro, já depurado em seus longos anos de militância pelo reconhecimento e valorização do negro na sociedade, organizou a Marcha Contra a Farsa da Abolição.

Em seu panfleto de convocação, trazia a foto de Morier abaixo de uma pintura do século 19, que mostrava os castigos corporais infligidos aos escravos; em sequência, os dizeres: “Nada mudou, vamos mudar”. A reivindicação era clara, o preconceito também. O grupo marcharia da Candelária até a estátua em homenagem a Zumbi, na altura da Praça Onze. O movimento queria por abaixo o mito da democracia racial, expor as feridas narcísicas de uma sociedade que negava direitos básicos a uma população durante séculos escravizadas. Queria denunciar uma abolição capenga que legara uma liberdade deficiente em políticas sociais, e formar seus próprios heróis que representassem sua luta. O 13 de maio, durante anos celebrado como ponto culminante da liberdade, não condizia com os anseios verdadeiros de uma liberdade plena construída com resistência e luta. Mas uma metáfora interrompeu os planos.

Em uma cartilha elaborada por padres e religiosos negros em 1987, Frei Davi (militante do movimento) propunha, num revisionismo histórico, destruir os falsos heróis e colocar no lugar deles os verdadeiros. E elencava substituir a imagem do pseudo-pacificador Duque de Caxias pela imagem de Zumbi. A metáfora foi tomada pelos militares como uma ameaça velada de destruição do Panteão de Caxias em frente ao Comando Militar do Leste. Na manhã de 11 de maio de 1988, a Central do Brasil amanheceu tomada de soldados que impediram, no fim da tarde, a marcha do movimento, acirrando os ânimos e expondo um preconceito velado. Mas o movimento negro conseguiu a visibilidade e a exposição da fratura social que há muito era maquiada pelo eufemismo da vitória da miscigenação. Paulatinamente, leis foram dando reparos, ainda insuficientes, na extensa história de colaboração dos negros na constituição do panorama nacional.

Apesar de certas vitórias, hoje, 323 anos após o sangue de Zumbi escorrer no Largo do Carmo, ainda se enfrenta dificuldade e resistência de muitos setores em aplicar o preconizado na lei 10.639/2003; por exemplo, exibindo o profundo abismo em que nos encontramos. O proclame do panfleto de 1988, “nada mudou, vamos mudar”, infelizmente continua atual. Resta ainda o trabalho de conscientização, contínuo, perpétuo, para que efetivamente cumpra-se, positivamente, aquilo que Dom José Maria Pires gritava a plenos pulmões: “Estamos recolhendo, hoje, os frutos do sangue de Zumbi, símbolo da resistência de nossos antepassados. Chegou o tempo de tanto sangue ser semente, de tanta semente germinar”.

* Livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades e doutorando em literatura (PUC-RJ)

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