ASSINE
search button

Banksy, ou a arte como armadilha

Compartilhar

No dia 5 de outubro de 2018, a arte contemporânea nos deu mais uma amostra de seu caráter disruptivo, pelo qual é famosa. Um leilão na galeria de arte Sotheby’s, em Londres, se tornou um dos maiores feitos da história da arte mundial, entrando nos trending topics do Twitter, inclusive no Brasil. Mas desta vez não foi por causa do valor altíssimo das peças vendidas, e sim pela inesperada autodestruição do quadro “A menina com balão”, réplica de um mural icônico do artista contemporâneo Banksy, emoldurado e leiloado por cerca de R$ 5 milhões. A cena da arte foi presa na armadilha do artista. Ninguém havia percebido, ou poderia desconfiar, que por trás da moldura clássica haveria um dispositivo eletrônico que, no momento em que o quadro foi vendido, acionou o cortador de papel para picotar a obra. Crucial detalhe: por sorte ou azar do artista, o dispositivo só cumpriu o seu papel até a metade do desenho.
Tal ato iconoclasta não é tão surpreendente quando se trata de Banksy, um artista de rua que desde seu surgimento se mantém anônimo e é famoso por suas críticas sociais sarcásticas, feitas principalmente através de murais, instalações e performances. Especula-se que ele tenha nascido em Bristol, no Reino Unido, por volta dos anos 70. Nas ruas desta cidade foram vistos os seus primeiros trabalhos em estêncil e boa parte de sua obra, mas ao longo do tempo eles se espalharam por inúmeras outras cidades do mundo, usualmente com temas que se adequem à situação política local. E não são apenas os muros que portam suas mensagens. Banksy foi responsável também por criar a “Dismaland”, uma versão deturpada e mais sombria dos parques temáticos da Disney, além do “The Walled Off Hotel”, o hotel com a “pior vista do mundo” (o muro separando Israel e Palestina), que está em pleno funcionamento e aberto a hóspedes até pelo menos 2019.
Embora totalmente coerente com o paradigma contemporâneo de arte, o que surpreendeu no leilão da Sotheby’s foi a própria destruição da obra. Nota-se que ela estava exposta em uma bricolagem típica da contemporaneidade: emoldurada em estilo clássico (de forma incoerente com a obra do artista, inclusive), ela era portadora (secreta) de uma tecnologia relativamente avançada. De acordo com vídeo divulgado por Banksy em seu canal no Youtube, o cortador de papel foi instalado logo que o desenho foi emoldurado, prevendo uma futura venda; o dispositivo foi testado diversas vezes para garantir que o desenho fosse picotado por inteiro. Assim, o que parecia ser apenas um leilão de obra de arte foi, na verdade, pretexto para uma performance artística bem planejada. Isto abre inúmeras possibilidades de interpretação, seja em relação ao artista, à arte, ao mercado ou aos dispositivos técnicos que permeiam as produções contemporâneas.
Alguns poderiam ver a performance artística como uma tentativa de desbanalização da obra. Em 2017, “A menina com balão” foi votada como a obra de arte preferida dos britânicos, sendo estampada, por todo Reino Unido, em bolsas, roupas e souvenirs diversos; neste sentido, sua destruição pode ser vista como uma tentativa de restaurar a significação perdida pela banalização, dando-lhe um novo significado que a desmercantiliza. Outros podem entender que se expressa aí um gesto de recusa de institucionalização da obra por parte de um artista cujo lugar de atuação foi a rua, fora dos muros dos museus e das galerias. Outros, por fim, podem identificar um irônico ato de “autoiconoclastia”, ou, em outras palavras, de “autoterrorismo”, em que a esperança representada pela imagem teria sido dilacerada por um “ato terrorista” cometido pelo próprio artista contra si mesmo. O corte destrói a “aura” sagrada da obra de arte e transforma-a em um objeto contingente. Agora ela não mais representa apenas uma menina com balão e uma mensagem de esperança, como é também um símbolo da crítica ao mercado de arte, à perenidade das obras e ao espaço do museu em oposição à rua.
Nesta performance de Banksy, a contingência própria da arte contemporânea se potencializa com o acontecimento imprevisto na sua execução. Se o cortador tivesse funcionado perfeitamente, o desenho teria sido destruído, mas, ironicamente, ao ser picotada somente até a metade, “A menina com balão” dobrou seu valor no mercado (para a felicidade e o alívio do comprador), manteve viáveis sua venda e sua exposição e, curiosamente, ganhou significações imprevistas pelo próprio artista. Assim, independentemente do fato de haver muitas possibilidades de interpretação da performance e, também, de a obra poder ser ressignificada ininterruptamente ao longo do tempo, é inegável que ela foi uma síntese perfeita do que é a arte contemporânea: efêmera, performática e imprevisível.

* É livre-pesquisadora do Ateliê de Humanidades e mestranda em Antropologia (UFRJ)