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Uma safra medíocre

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Não é mau humor da velhice. Mas lamento dizer aos mais jovens, e incluo minha filha de 21 anos, que o Brasil já foi bem melhor servido de homens públicos. A safra atual, sem dúvida é medíocre. Mais ainda quando comparamos os escolhidos para compor o futuro ministério de Jair Bolsonaro com nomes de outros tempos. Não importa se pertenciam à esquerda ou à direita: eram infinitamente superiores. Dá para comparar um esforçado Paulo Guedes a Mário Henrique Simonsen ou Celso Furtado? A resposta é um rotundo não. O que dizer, então, do futuro chanceler do Brasil, sabatinado e sacramentado pelos filhos de Bolsonaro? Diante das bobagens ditas e escritas por Eduardo Fraga Araújo, pergunta-se no exterior se o Itamaraty não submete seus quadros a exame psicotécnico.

É de cortar o coração. O Ministério das Relações Exteriores nunca caiu em mãos tão desqualificadas. Para o cargo ocupado pelo Visconde e pelo Barão do Rio Branco, o capitão reformado decidiu nomear um diplomata cujo principal mérito foi ter mantido um blog antipetista durante a campanha eleitoral. Como se isso desse lastro suficiente para alguém assumir o Itamaraty. Não é preciso ir muito longe para concluir que Bolsonaro está cometendo um erro gravíssimo. Basta ler algumas frases de autoria de Araújo. Eis, abaixo, um exemplo:

“Quero ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globaliza. Globalismo é a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural. Essencialmente é um sistema anti-humano e anti-cristão. A fé em Cristo significa lutar contra o globalismo, cujo objetivo último é romper a conexão entre Deus e o homem, tornando o homem escravo e Deus irrelevante. O projeto metapolítico significa, essencialmente, abrir-se para a presença de Deus na política e na história”.

Alguém entendeu o arrazoado ‘metapolítico’ da lavra do futuro chanceler? Se não entenderam, leiam novamente, por favor. Parece coisa de maluco. O cidadão mistura Cristo, Deus, política e globalização e produz uma maionese ideológica quase absurda. De dar inveja ao Pai Ubu, criado por Alfred Jarry (‘Se não houvesse a Polônia, não existiriam poloneses’). Os Bolsonaros, porém, ficaram impressionados. Vai ver que foi exatamente porque não entenderam nada. Dizem eles que Araújo expressa o pensamento do presidente eleito, daí a conexão fácil e a escolha de seu nome. Se é assim, vamos de mal a pior e estamos próximos do elogio da loucura. Se alguém repetir no meio da avenida Rio Branco que “a fé em Cristo significa lutar contra o globalismo” e outras sandices desse nível correrá o risco de ser internado. Mas Eduardo Araújo teve melhor sorte: vai se tornar ministro.

O Itamaraty, quem diria, acabou em Araújo. Por lá, porém, passaram intelectuais de primeira linha, como Oswaldo Aranha, San Tiago Dantas e Afonso Arinos de Mello Franco. E essa impressão é que ficará, Pelo menos, para mim. Conheci Afonso Arinos na casa de meu tio Odylo e depois na Faculdade Nacional de Direito. Fui aluno do famoso político mineiro, chanceler de Jânio Quadros e membro da Academia Brasileira de Letras. No primeiro dia de aula, em março de 1970, ele chegou de terno de linho, elegante como sempre, apoiou-se na mesa e apresentou-se rapidamente como nosso professor de Direito Constitucional. Eram dias difíceis, em plena ditadura militar, com alunos sendo presos nos corredores da Faculdade por agentes do Dops e do Cenimar. Mas Afonso Arinos era um homem íntegro e corajoso. Fundador da UDN pela qual se elegeu deputado federal e senador de 1947 a 1967, já havia cortado qualquer ligação com o regime autoritário.

Logo após a apresentação. Afonso Arinos nos surpreendeu a todos com a seguinte explicação: “Nossa matéria é o Direito Constitucional. Mas, como os senhores sabem, em nosso país não há uma Constituição digna desse nome. No texto de 1967, não há sequer o tradicional capítulo das garantias individuais. Vivemos num Estado de Fato, e não de Direito. Sendo assim, considerem-se todos aprovados, com nota dez. E quem quiser poderá assistir minhas aulas, em que falarei de minha experiência política”. Eu fui assíduo ouvinte durante todo o ano. Não perdi a oportunidade de acompanhar os relatos do ex-chanceler sobre a história do país. Hoje, penso na grandeza de Arinos e me compadeço do triste destino do Itamaraty.