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História e consciência negra

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Na semana em que comemoraremos o Dia da Consciência Negra, somos convidados a relembrar um passado vergonhoso que inclui o tráfico de quase seis milhões de africanos em condições degradantes, que viriam a ser escravizados no Brasil, último país a abolir a escravatura, por mais de 300 anos. É também o momento de refletir sobre como tamanha crueldade ecoa ou se atualiza no presente. É hora de reconhecer os poucos avanços e perseguir outros tantos, vislumbrando futuro mais digno para aqueles que foram e são basilares na construção da nação e responsáveis diretos pelo riquíssimo pluralismo da cultura brasileira. Já passou da hora de compreendermos que o simples fato de ser branco implica em privilégios, que, por sua vez, se darão em diferentes medidas a depender do extrato social ao qual se pertença. No entanto, a branquitude, independentemente de qualquer variável, traz vantagens objetivas, subjetivas e simbólicas, que não podem ser estimuladas, sequer admitidas, no projeto de um mundo equânime.

É preciso atentar para o fato de que sermos uma sociedade mestiça, composta pela mistura de várias etnias, não garante, por si só, o respeito às diferenças, a boa convivência, e, tampouco, a justiça social. A interpretação equivocada de que viveríamos numa “democracia racial”, traz, por extensão, não apenas a falsa ideia da coexistência pacífica, mas, principalmente, a de uma suposta igualdade de oportunidades. Diferentemente da visão idílica do Brasil como irmandade harmoniosa, tolerante, compreensiva e próspera, as estatísticas falam sobre outra realidade, na qual, por exemplo, a maior parte da população carcerária é composta por homens negros. Ou, ainda, que dentre os jovens assassinados nas periferias da cidade, a maioria esmagadora é de negros ou pardos, ou que mulheres negras estão entre os que desfrutam de menor remuneração no mercado de trabalho.

No campo acadêmico, a despeito do cenário hostil e à custa de enorme esforço, resiliência e conscientização, o espaço vem sendo ocupado por cientistas negras, superando, pouco a pouco, o machismo e racismo do ambiente das ciências. Enedina Alves foi uma das primeiras. Nos anos 40 fez história ao se graduar em engenharia, abrindo caminhos para outras, como Sonia Guimarães. Titulada pela Universidade de Manchester, é a primeira negra brasileira doutorada em física pela prestigiada instituição, e, há mais de duas décadas, é docente do renomado Instituto Tecnológico da Aeronáutica, o ITA. Entre as duas, mais nomes fulguram, e anônimas, ao se sentirem representadas, fortalecem seus próprios passos e trilham sonhos. Há ainda um longo trajeto a ser percorrido. E a caminhada é de todos nós, pois um mundo mais equilibrado e solidário é sinônimo de benefício coletivo e de resgate do que há de melhor na humanidade, ou seja, a capacidade de ter empatia e agir em união por um bem comum.

Assim como nas ciências, os negros precisaram forjar seu lugar nas artes. Trata-se de luta antiga e contínua. Basta observar, ainda hoje, o reduzido número de protagonistas negras nas tramas das populares telenovelas brasileiras, mesmo quando se passam na Bahia, ou do cinema. Originado nas práticas teatrais, o chamado “blackface” era utilizado em filmes nos idos de 1900 para que atores brancos, com rosto e partes visíveis do corpo pintadas de preto, representassem personagens negros. Com frequência, eram ridicularizados e se expressavam com sotaques descabidos e comportamento condenável. Em 2016 a premiação do Oscar foi, justamente, boicotada em protesto contra a ausência de indicações a atores negros, refletindo uma desigualdade histórica a ser reparada. Não por acaso, produções como “Estrelas além do tempo”, “Moonlight: sob a luz do luar” e “Um limite entre nós” foram viabilizadas e indicadas no ano seguinte.

Em uma sociedade onde os preconceitos se empilham em camadas, os brancos, mesmo quando desfavorecidos economicamente, e, portanto, também vítimas da desigualdade, não sentem pela, e na pele, adversidades específicas vividas exclusivamente pelos negros. Para além das porcentagens, o cotidiano grita que muitos, simplesmente pelo tom da tez, são discriminados em situações corriqueiras. Em filas de comércio variados, nos bancos dos bares ou das universidades, são olhados, frequentemente, com desconfiança. Em todos os cantos. Basta abrir olhos e orelhas para ver, ouvir e se indignar. Aqui nos ajuda o poeta Bertolt Brecht, ao dizer que “uma testa sem rugas é sinal de indiferença”, tentando nos estimular a não naturalizar os absurdos e nos afetar com eles. Não podemos perpetuar a segregação histórica e tricentenária como se fosse algo inalterável. No Brasil, ou mundo afora a discriminação racial vive. Seja nos ambientes mais simplórios ou naqueles que ostentam, não raro, em proporções equivalentes, riqueza material e pobreza de espírito. Que assim não mais seja...

Thelma Lopes*

* Artista profissional, mestre em

Teatro e doutora em Ciências