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A defesa da cidadania

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À medida que o tempo passa, a inquietação sobre nosso futuro se agrava. Ainda outro dia atribuiu-se a Paulo Guedes uma frase carregada de tempestuosos predicados, pois alertava aos desavisados que o futuro czar da economia brasileira pretende erradicar a social-democracia, responsável, segundo ele, pelo atraso de nosso país. Os juros escorchantes, as dívidas interna e externa seriam tributárias de uma conduta ideológica ultrapassada. Impõe-se, portanto, fazer uma cirurgia radical e adotar-se uma restauradora linha de ação que nos leve ao almejado progresso. Tivéssemos, na campanha eleitoral, tido a oportunidade de ver uma frase como essa debatida em suas implicações para o desenvolvimento econômico do país, para o compromisso de se garantir saúde e educação para os que delas necessitamos, não estaríamos com soturnas apreensões. E não estaríamos pela simples razão de que não teríamos apoiado essa proposta, e ela, ou seria retirada definitivamente do programa de governo, ou então, se não fosse, muito provavelmente não teríamos conduzido ao poder quem nela insistisse.

O mesmo raciocínio poderia ser aplicado às ideias e propostas do novo chanceler designado para conduzir nossa política externa. A visão de que o presidente Trump é o grande líder da restauração dos princípios ocidentais não é compartilhada pelo Ocidente, que o vê como um agressivo e patético presidente a quem até Macron teve que criticar o comportamento nos festejos do Dia do Armistício. Nosso chanceler terá alguma dificuldade para atrair seguidores dessa nova realpolitk-messiânica-libertadora.

Hoje, quando ouvimos determinadas propostas, temos a impressão de que a eleição de outubro passado provocou em certas mentes o efeito de um big-bang, como se as leis, e sobretudo a Constituição do Brasil, tivessem ido para o espaço sideral. Pior até, em alguns casos, se confunde o mandato eleitoral com um cheque em branco para que os eleitos se arvorem direitos de uma verdadeira assembleia constituinte. Se permanecer este equívoco, a cidadania brasileira se encontrará diante de um de seus maiores desafios: terá de assumir o dever inerente de defesa social e de dignidade da vida que lhe é assegurado na Constituição de 1988, cujo tempo de vida já ultrapassou os anos do interlúdio ditatorial e de suas constituições outorgadas sem a chancela da soberania popular. Com essas, a Constituição de 1988 não se pode comparar a não ser por mentes juridicamente iletradas, que confundem mandato popular com absolutismo ditatorial, imposto pelo arbítrio e pela violência. Desse risco a sociedade brasileira não quer saber, como atestam as reiteradas pesquisas que confirmam nossa inamovível adesão aos princípios e regras do Estado Democrático de Direito. Há quem diga que o fato de nossos mandatários jurarem obedecer a Constituição seria garantia de seu fiel cumprimento. Porém, não se deve confundir juramento com conhecimento dos limites nas tentativas de “aperfeiçoar” a Constituição para adaptá-la a supostas evoluções econômicas e sociais de nosso tempo. Já ouvimos que nossa Constituição é detalhada ou minuciosa demais, o que a tornaria inaplicável ou irrealista. Há os que o dizem com olho comprido sobre o que consideram um exagero na listagem de direitos fundamentais do cidadão, pobre ou rico. Outros o fazem de olho no controle do capital, visto como limitação ao liberalismo econômico.

É esta tensão, entre a proteção social e o liberalismo econômico, que o Doutor Guedes quer romper, acenando com o neoliberalismo em galope pelo mundo. Em suma, assiste-se no Brasil à aurora do novo mundo ultraliberal. As emendas constitucionais serão o instrumento para fazê-lo. Mas as emendas terão que se conformar aos princípios constitucionais e aos direitos sociais nela inscritos. Pretendo, nos nossos próximos encontros, aprofundar o tema. Provavelmente, meus artigos se tornarão ainda mais áridos do que já são. Vocês, leitor e leitora, podem sempre mudar de página. Ou de país.

Adhemar Bahadian*

* Ex-embaixador do Brasil na Itália (e-mail: [email protected])