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Voluntarismo e legalidade

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Quem assistiu à conferência de imprensa de Donald Trump, após as eleições nos Estados Unidos, lamentou o espetáculo de voluntarismo e megalomania encenado na Casa Branca. Estávamos próximos de um bate-boca de botequim. Que saudades de Obama, sua retórica fluida e convincente. Que saudades de um tempo não tão longínquo, quando perguntas incômodas de jornalistas eram consideradas da essência da democracia e do Estado de Direito. Em dois anos, Trump avacalhou – o termo é mesmo esse – o ritual da Presidência da República, a dignidade de um chefe de Estado e nos provoca sentimento de pena diante de tanto primarismo voluntarista no chefe da nação mais democrática do planeta. Certamente Charles Dickens, se vivo fosse, não hesitaria em reescrever que vivemos os “piores tempos”.

Sombrios e temerosos tempos, digo eu, quando me recordo que aquele intempestivo presidente pode pressionar um botão vermelho – ou será azul? – e transformar o Planeta Terra numa poeira cósmica. Risíveis e ridículos tempos em que um presidente pretende transformar uma derrota eleitoral de quase rotina numa declaração de guerra entre instituições secularmente harmônicas e complementares desde Locke. Tempos encharcados de ódio, quando terminada a conferência de imprensa, o presidente demite o procurador-geral da República por não se ter alinhado à sua política de mascaramento de possíveis crimes contra a legislação eleitoral do país. Tempos de maquiavélicas manobras em que o chefe de Estado humilha publicamente um repórter e seu jornal e os descredencia da Casa Branca.

Por mais que já estivéssemos acostumados com as ilegalidades e grosserias públicas de Trump, que se compraz em denegrir a imagem pública de colegas, chefes de governo e de Estado ,como ele, por mais que estejamos com as tripas revolvidas ao ver o tratamento paralisante que se permite infligir, como a peçonha da serpente, a crianças e mães, imigrantes miseráveis, separando-os e os enjaulando como feras famélicas de um mundo de exclusão e de imortal indiferença; por mais que assistamos diariamente ao escárnio diante de minorias, ao apoio a rituais violentos de segregação, ao voluntarismo diante da lei das gentes; por mais de tudo que pensemos e temamos, Trump sempre nos surpreende com a possibilidade do mal maior.

Talvez, desta vez, tenham ferido seu narcisismo patológico as mulheres negras, islâmicas e gays, eleitas para a Câmara dos Deputados. Símbolos da resistência à barbárie inoculada na sociedade americana, dividida e maligna como um tumor. Essa constatação, Trump não suporta, porque talvez reflita sua imagem especular. Dorian Gray aos estilhaços, Trump se esforça para lançar ao mundo o manto hipnótico da “America First “, transmudada na América temida por amigos e inimigos. Longe do Deus que a abençoa.

Suas propostas de negociações exclusivamente bilaterais nada mais são do que a imposição, pelo desnível de poder, de leoninas regras políticas e econômicas. Desmonta paulatinamente a arquitetura de salvaguardas nucleares erguida por seus antecessores e estimula uma corrida armamentista biliardária. Acolitado por uma quadrilha de hienas políticas, sugere que o Brasil se vincule à Otan e o continente sul-americano se transforme num palco de tensões internacionais, onde nossas Forças Armadas assumam a gendarmeria de um destino que manifestamente não é o nosso. No mapa mundi de Trump, o Brasil é um gigante autista.

É hora de reler a história do século 20 (e já passou da hora de ler a Constituição de 1988, com os comentários de José Afonso da Silva. Leia, pelo menos, os artigos 1º, 5º e 170º). Certamente, Trump há de se mostrar mais incontrolável nos dois últimos anos de seu mandato. Não se pode eliminar a possibilidade de que seja reeleito. Sua política, mistificadora, de aprofundamento das desigualdades sociais continuará .Terá o apoio de sempre dos que sempre apoiam o poder canibal. Mas a luz que surge no fim do túnel poderá iluminar o Brasil.

* Ex-embaixador do Brasil na Itália (e-mail: [email protected])

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artigo | jb | opinião | Trump