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Crônica de um país que não se acha

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Eis que, naquela manhã, ela saiu da cama disposta a limpar a relativa bagunça em que ficara a cozinha, depois do jantar que o marido fizera por conta do aniversário de casamento deles. Com o marido ainda roncando pelo vinho a mais que ingerira durante a noitada, ela se dirige à mesa onde jaziam não apenas as taças do dia anterior, como também copos e potinhos plásticos e de vidro d´outras festinhas. Ela, organizada, varre o chão e vai, cuidadosamente, guardando os copos e as taças. Contudo, na hora de guardar os potinhos, eram oito no total, três deles, para seu terror, estavam sem tampa. “Ai, meu Deus, e agora?!”, exclamou, perguntando-se sem ter como responder. O marido, que já acordara e entrava na cozinha, espantou-se e ensaiou uma retirada estratégica, crente que ela descobrira a besteira que ele fizera na noite anterior. Mas não, ela não descobrira. Ufa! Apenas perguntou para ele se vira as preciosas e insubstituíveis tampinhas dos estimados potinhos “que são da mamãe e ela vai me matar se não achar as tampas!”. Aliviado, o marido aponta para o escorredor e diz “amor, olha ali, não são aquelas?”. Ela olha, corre e descobre que sim, duas delas eram as tampas faltantes, mas as outras duas eram tampas de outros potinhos, dela, que havia emprestado para a filha, sem tampa porque não as achara na hora e que aguardava a devolução para os conjuntos serem restabelecidos. Mas ainda faltava uma tampinha. Depois de quase uma hora procurando e da casa revirada (até a casinha do cachorro foi revistada), ela desiste e começa a pensar na desculpa que ofertaria à mãe para o desastre do potinho sem tampa.

Pouco depois, enquanto o marido limpava a piscina, ao som de Beatles e regado a cervejinha, para preparar a casa para o churrasco pelas bodas de prata do casal, que aconteceria dali a pouco, ela vai estendendo a roupa da família, que acabara de lavar na máquina e descobre, embora sem nenhum espanto, que o pé de uma de suas meias e que o pé de uma das meias do filho mais novo haviam sumido! Como fizera tantas outras vezes, ela separa as duas meias para aguardar aquele momento em que os outros pés serão localizados para completar os dois pares, agora díspares.

Há quem afirme que existe um universo paralelo para onde se encaminham pares de meia e tampas de potinho. Dizem, também que, uma vez abduzidos, esses objetos viram entidades etéreas e jamais retornam, embora alguns consigam escapar. Uns tantos falam, não sem um quê de provocação, que as bolsas femininas também são passagens místicas, notadamente para os aparelhos de celular, mas essa é outra história... Fato é que este universo paralelo não é, apenas, segundo percebo, das tampas dos potinhos e dos pares de meia (além, talvez, de um e outro celular), é também do Brasil atual. O problema maior ocorre quando o intangível se sobrepõe ao tangível; quando a vida começa a não fazer muito sentido, não mais do que um roteiro de quinta categoria ou do que a busca, infrutífera, por tampas e meias.

O candidato à Presidência que fugiu dos debates de ideias, possivelmente por não tê-las, dizia as maiores sandices, e as pessoas ignoravam; dizia as maiores impropriedades históricas e políticas, e as pessoas achavam engraçado; ele está há 30 anos no Congresso, mas acham que é “novo na política”; foi filiado ao partido com mais investigados, acusados e condenados no “petrolão”, o PP, e fez parte dos acusados de receber propina, além de esconder patrimônio, mas as pessoas dizem que ele é honesto; diz, dentre outras, a maior das violências, que é pregar contra a vida, abertamente, contrário aos melhores valores humanos e espirituais, e as pessoas o aplaudem, algumas sem perceber o engodo, outras o desejando, por preconceitos e autoritarismo. Esses são fatos bizarros que, esperava, não mais aconteceriam após o nazi-fascismo ter sido derrotado após a II Guerra Mundial. Pelo visto, não foi, mas o universo paralelo dos “sem noção e sem humanidade” está, contraditoriamente, se comunicando com o mundo real, e estamos presenciando o maior dos disparates políticos: o terror pré-medieval e inquisitorial está vencendo a liberdade, a igualdade e a fraternidade. E isso transcende a dicotomia direita-esquerda: lutar contra ideias escatológicas e antidemocráticas é uma briga civilizatória e sanitária. E aparentemente, eterna.

Uma nuvem carregada paira sobre nós e estamos brincando de tomar banho de chuva, sem ver os raios que se aproximam e que por aqui poderão nublar o tempo por décadas, como em passado recente. Vai ser muito difícil reconstruir este país, caso o obscurantismo autoritário prevaleça.

Sinal dos tempos: a decência, a gentileza, a sutileza, a fraternidade, o respeito pela diversidade e o amor ao próximo, todos esses valores (e uns tantos mais) que estão sumindo deste país, se forem encontrados, um dia, quem sabe, talvez o sejam se os descobrirmos ocultados pelos escondidos pares de meias e pelas tampas dos potinhos no universo, que parece ser, ou estar se tornando, paralelo de um mundo realmente humanitário e democrático. Talvez possamos ligar para os celulares abduzidos, com o intuito de achar esses valores humanitários; talvez os reencontremos. Vai saber! O que indago, neste momento tenebroso é: vamos realmente permitir que a tempestade se instale e que as forças do mal deste universo paralelo invadam nosso universo real do Brasil em que vivemos?

* Geógrafo e pós-doutor em Geografia Humana ([email protected])