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Cenário sinistro

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“Uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção”. A afirmação está no livro “Um teto todo seu”, da inglesa Virginia Woolf. A publicação surgiu de palestras que a escritora feminista fez em duas faculdades exclusivas para mulheres, localizadas na Universidade de Cambridge, em 1928. Após apresentar suas ideias sobre o assunto para as alunas, a inglesa ajustou o texto, que foi transformado no livro de ensaios. É um livro escrito por uma romancista, o que dá às páginas a beleza e o lirismo que as leitoras procuram numa obra de ficção. Mas beleza e lirismo, quando se trata de uma inglesa feminista da década de 20, não vêm desacompanhados de uma alta dose de acidez e – claro – crítica aos costumes da época. Ela atira para todos os lados e não poupa grandes nomes da literatura: “A indiferença do mundo, que Keats (John Keats, poeta romântico inglês – nota desta articulista), Flaubert (Gustave Flaubert, romancista francês) e outros homens geniais achavam tão difíceis de suportar, não era, no caso dela (uma escritora do gênero feminino) indiferença, mas hostilidade. O mundo não dizia a ela, como dizia a eles: ‘Escreva se quiser, não faz diferença para mim’. O mundo dizia, gargalhando: ‘Escrever? O que há de bom na sua escrita?”. Virginia não deixava ninguém fora do seu balaio de críticas.

Ah, mas isso foi lá no começo do século 20! Os tempos agora são outros – dirão os eternos otimistas – ou cegos – do gênero, aqueles que argumentam que hoje as mulheres trabalham, competem, jogam, cantam, escrevem. “Veja você, está aí escrevendo seus textos cheios de misandrias (sim, estes artigos já receberam essa acusação dos machistas que têm a paixão mórbida por apontar o dedo para qualquer mulher que jogue luz às diversas atitudes misóginas que eles praticam normalmente no dia a dia), está reclamando de quê?”. Sim, os machistas do século 21, das fake news, da propagação dos discursos de ódio e das postagens-lixo na internet deixariam Virginia Woolf perdida no tempo. Ela correria o risco de achar que voltara à Idade Média. A escritora colocaria em dúvida o Iluminismo, achando que tudo não passara de uma grande ilusão na física do tempo. Porque não, cara leitora, os tempos não são lá muito outros.

A presidenta que não agradar a uma parcela da população corre o risco de virar adesivo pornográfico a “decorar” carros pelas ruas. Por outro lado, o presidente eleito por uma minoria tem ao seu lado os defensores de plantão, a afirmar: “agora vamos torcer para que ele faça o melhor”. Sem entrar no mérito do que o tal presidente fará – com certeza um presidente que afirma que a filha mulher nasceu devido a uma fraquejada não fará o melhor – os tempos ainda são bem áridos para as mulheres. Para as que ousam escrever ou para as que ousam trilhar um caminho próprio de forma geral.

Segundo pesquisa sobre trabalho não remunerado realizada pelo IBGE, 26,9% da população de 14 anos ou mais no Brasil cuida de uma outra pessoa dentro de casa – filhos, familiares doentes, deficientes ou pessoas idosas. Desse índice – entre os que cuidam – 33% são mulheres, contra 21% dos homens. O restante dos cuidados é feito em conjunto. Até mesmo no transporte para o médico, escola ou algum tipo de lazer, a dedicação da mulher é maior: 70,8%. A pesquisa é do ano passado, a mais recente do tipo feita até agora. Certamente, os dados não mudaram muito de lá pra cá. Não mudaram muito em um ano. Nem em um século. A ver nos próximos quatro sinistros anos.

* Jornalista