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Em "Deslembro", um Brasil que luta para não esquecer

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Na sessão do Festival do Rio, no último domingo, às 21h30, quando a roteirista e diretora de “Deslembro”, Flavia Castro, apresentou brevemente sua obra para a plateia, uma senhora desconfiada perguntou: “É um filme sobre a ditadura?”. Em tempos voluntariamente desmemoriados, a interrogação soou até como uma reprimenda ou provocação. Sem tergiversar, Flavia situou o público naquilo que parece ser o centro da história, escrita a partir de 2009, segundo ela: “Deslembro” fala sobre a importância de lembrar — hoje, mais do que nunca — sobre o período histórico entre 1964 e 1985 no Brasil.

O ponto de vista da trama é de Joana, adolescente brasileira, cuja família mora em Paris, quando a anistia é decretada em 1979. Sua volta ao Brasil, muito a contragosto, permite ao espectador uma trajetória surpreendentemente familiar sobre a construção da memória e da verdade no país. O pai da garota desapareceu nos porões do Dops. As idas e vindas de Jojo revelarão que suas lembranças dependem não só daquilo que espontaneamente se registra e se presentifica, mas também exigem um esforço político de construção coletiva de narrativas.

As escolhas figurativas são muito bem-sucedidas no sentido de comunicar os valores do filme, contextualizando as lutas contra o arbítrio na América Latina. O padrasto da personagem principal é um chileno, trazendo a língua castelhana e a realidade de Pinochet para a obra. O francês, pregnante ao filme, atua na direção de demarcar um bovarismo, um não-pertencimento ao Brasil, sobretudo nas elocuções seletivas de Joana, que, volta e meia, resiste à ideia de se misturar ao seu país de origem e, em verdade, ao processo de elaboração de suas memórias, coincidentemente aquelas também do Brasil.

As lembranças de sua infância aparecem aos poucos. A troca de nome do pai, diálogos no carro em um dia chuvoso, a mãe com o braço sangrando. Destruídas por medida de segurança, as fotos do pai se resumiram a uma, que Joana prefere não ver. Aos poucos, o espectador compreende a confusão de afetos nas memórias da jovem: a falta do pai, a raiva e a culpa. Sobra até para a “revoluçãozinha” do padrasto. O roteiro brilha no entrecruzamento das nuances eminentemente pessoais e políticas das temáticas suscitadas por “Deslembro”. Há “luta de classes” e “trotskinho”, mas existe também espaço para as paixões e demandas imediatas: “De que vitória você tanto fala?”, pergunta Jojo para seu padastro — e para todos nós de 2018.

Em uma das grandes cenas do filme, a menina enfrenta a mãe sobre o status de seu pai. Como ela poderia ter certeza que ele simplesmente não foi comprar um cigarro e nunca mais voltou? Joana finge não entender o que é um desaparecido político. Mais tarde, para a avó, mãe do pai, grande aliada no caminho de costura de um passado possível, ela indaga: “Como a gente tem certeza que ele morreu?”; e “Então, não serviu de nada [as reuniões com outras mães de desaparecidos]?.

A luta de Joana para entender o que é verdade e o que não é de suas memórias, o que ela precisa conhecer para além do que lembra e o que pode deixar adormecido, se põe em analogia ao processo nacional de conhecimento do seu período ditatorial mais recente. Talvez fosse melhor não sermos brasileiros, como a protagonista resistiu em um momento, talvez seja mais fácil esquecer ou mesmo nunca chegar a saber. Nada disso. Deveríamos segui-la e enfrentar os meandros da memória e da verdade. Pelos olhos de uma adolescente, “Deslembro” é peça fundamental para o debate e a manutenção de nossa jovem democracia.

* Advogado da Secretaria Estadual de Direitos Humanos