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Os náufragos da crise

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A mais grave, prolongada e profunda crise da história brasileira fez grandes vítimas. A principal, claro, a democracia, que foi ferida de morte quando uma coalizão do Judiciário, do Congresso e da mídia, tirou do governo uma presidenta recém-reeleita pelo voto popular.

O Congresso, por ter feito o que não podia, porque as tais pedaladas fiscais não configuravam razão para deposição de um presidente. A mídia, porque se constituiu num tribunal de destruição de reputações, acusando e julgando líderes políticos que não lhe agradavam. O Judiciário, porque assistiu passivamente a todas as violações do Estado de Direito e não cumpriu com suas reponsabilidades de zelar por ele. Foi instalado, assim, um governo ilegítimo, que colocou em pratica o programa da oposição, derrotado quatro vezes sucessivas nas urnas. Só poderia fracassar, como fracassou, com o seu ministro da Economia sendo arrasada na campanha eleitoral.

Assim, a própria República foi de roldão, todas as suas instituições perderam credibilidade, a política foi desmoralizada, a cidadania foi duramente golpeada, porque sua vontade foi violentada.

Nunca a imagem dos personagens que deveriam ser personagens fundamentais da esfera pública foram tão desmoralizadas. Quem dá algo por políticos que deram o golpe e apoiaram um governo sem prestígio algum? Quem preza juízes que promovem perseguições políticas e se calam diante dos acontecimentos mais graves da nossa história? Quem acredita numa mídia que se tornou partido da extrema direita, fazendo campanha pelo que de pior o país já produziu?

A crise liquidou o prestígio daqueles que a geraram e a protagonizaram. O formidável vigor democrático revelado pela sociedade brasileira, através dos líderes políticos que preservam credibilidade, dos partidos de caráter popular, dos movimentos sociais, dos intelectuais, dos artistas, veio pra ficar. A repulsão produzida por personagens deletérios, que promovem uma aventura política no país, como se pudessem dispor da nação para promover seus valores autoritários, seus anseios ditatoriais, sua volúpia tirânica de oprimir e reprimir.

O nosso Brasil, nosso querido Brasil, sofreu múltiplas feridas, seu povo foi desrespeitado, com a perseguição do único líder nacional com prestígio, com a imposição de uma máquina de mentiras multiplicada por um exército de robôs. A nossa democracia foi estraçalhada, desrespeitada, desmoralizada. A própria imagem do Brasil diante dos brasileiros, e de todo o mundo, foi rebaixada a seu nível mais rasteiro.

Não saímos da crise. Ela muda de forma, mas sem instituições respeitadas pelos brasileiros, não haverá saída da crise. E como resgatar um Congresso ainda mais conservador que o anterior, que tira direitos dos brasileiros, ao invés de garanti-los, respeitá-los e estendê-los. Como voltar a acreditar no império das leis com juízes venais como esses? Como ter confiança no que diz uma mídia que é vetor de imposição dos golpes contra a democracia?

O Brasil nunca mais será o mesmo depois de uma crise como essa. Ninguém mais poderá acreditar na democracia, no Judiciário, na mídia, no Congresso. Nunca mais voltará a acreditar no próprio Brasil, no seu destino, no seu futuro.

Mas, ao mesmo tempo, essa resistência o que de pior tem o país, que convocou o que de pior tanta gente tem dentro de si, mobilizou o que de melhor tem o Brasil, uma forca democrática como nunca havia surgido de forma tão ampla. Artistas, intelectuais, movimentos de mulheres, de negros, de jovens, uma massa de gente que não se resigna a ser dirigida e oprimida por quem faz a apologia da ditadura da tortura, que prega o fuzilamento dos adversários, a prisão e o exílio. Quem governar o Brasil terá um apoio forte desses setores ou sua oposição, que não deixará que se consolide a opressão e a discriminação.

Está na hora de fazer um balanço do que o país viveu nestes 5 anos terríveis, até chegar a esta situação. Para resgatar os espaços democráticos sobreviventes, fortalecemos, ampliá-los, convencer a mais e mais pessoas de que sem democracia no Brasil, nada de bom será possível, nem nos direitos de cada um, nem na convivência pacífica entre todos, nem nos sentimentos de solidariedade com os mais frágeis. Somos todos sobreviventes da crise e temos que estar à altura das circunstâncias.

* Sociólogo

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