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Quem tem medo do Brasil?

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Bem, então ficamos combinados assim. Nada de debates, nada de esclarecimentos. O salvador vai resolver tudo por nós. A cidadania descansa num berço cada vez menos esplêndido. Teremos mais cortes de gastos, mais desemprego, mais falta de atenção médica para crianças, mães e idosos da classe dita remediada. Irônico, porque também vão faltar remédios a custo popular. Paulo Guedes se cercará de valorosos financistas do setor bancário privado para dirigir o Brasil e transferir sabedoria neoliberal para as engrenagens do governo. O servidor público vai perder estabilidade. O imposto de renda terá uma taxa única de 20%. A moçada financeira, que pagará muito menos, ligou o silenciador. Nada de taxar lucros de dividendos, grandes fortunas. Favor não importunar. Abandonaremos o Acordo de Paris e, desta forma, ficaremos livres dessas obrigações com o aquecimento global, tufões e furacões que andam pela Ásia e pela América do Norte. Que importa? Deus é brasileiro. Seremos criticados pela comunidade internacional, que verá nessa atitude um anúncio de desmatamento da Amazônia. Mas, como já disse o provável futuro ministro de Infraestrutura do salvador, hoje para arrancar uma árvore no Brasil tem “uma porção de gente enchendo o saco”. Vamos ter também no mesmo ministério, a agricultura e o meio ambiente unificados, e o ministro será o atual presidente do sindicato dos grandes barões do agronegócio. Talvez os fertilizantes cancerígenos sejam mais tolerados. Mas isso se controla comendo menos alface.

Guedes pretende facilitar a atração de capital estrangeiro, reduzindo as alíquotas de tarifas aduaneiras. Gesto gratuito a la Collor, sem que ninguém nos peça e sem que recebamos nada em troca, como é o costume quando se faz esse tipo de negociação na OMC. Bem, os gringos vão adorar e bater palminhas para o Guedes. As empresas nacionais vão quebrar em proporção geométrica, mas isso também é um detalhe para um país em que a participação da indústria no PIB caiu de 28% para menos de 11% nos últimos anos. A redução tarifária deverá colocar na rua cerca de 300 mil operários, segundo estimativas do próprio governo. Bobagem, para quem já tem milhões de desempregados.

O salvador pretende, também, fazer modificações em nossa política externa para restaurar os princípios tradicionais do Itamaraty. A primeira dessas mudanças seria transferir a embaixada do Brasil de Tel-Aviv para Jerusalém, terra sagrada de judeus, cristãos e muçulmanos. Ao mesmo tempo, o Brasil romperia relações diplomáticas com a autoridade palestina, apesar de reconhecida pela ONU. Uma clara tomada de posição do Brasil em favor de Israel no maior conflito do Oriente Médio.

A segunda mudança seria estimular nossas relações comerciais com Taiwan e colocar limites no avanço chinês no Brasil. Concordo que deveríamos impedir que a China se tornasse proprietária de nossas estatais estratégicas. Mas porque só ela? A transferência da embaixada caracterizará nosso descumprimento a inúmeras resoluções intocáveis das Nações Unidas. Perderemos credibilidade e apoio. A China não gostará nada do namorico com Taiwan. Pode comprar minério de ferro da Austrália. E soja da Argentina. Nossos exportadores vão reduzir suas viagens de esqui na Suíça. O déficit comercial vai aumentar. Mas isso a gente resolve cortando salários aqui ou reduzindo ainda mais as políticas sociais. O que não dá para prever é se o Brasil vai entrar na rota do terrorismo internacional. Por que não entraria? Ao transferir a embaixada, vem anexa a geopolítica. Na América do Sul, podemos apoiar uma cirúrgica intervenção na Venezuela. Seria inédito e inconstitucional, mas Trump, quem sabe, convidaria o salvador para um “brunch” em Camp David. Teremos soldados a enterrar. Heróis da democracia. Quer saber? No fundo, quem vai ter medo do Brasil seremos apenas nós. Nos armaremos até os dentes para nos sentirmos seguros. A polícia matará impunemente. O porte de armas será o novo celular. A primeira viagem do salvador será a Israel. Talvez, para inaugurar a embaixada. Quem sabe traz o Muro das Lamentações. Salvadores são assim, podem tudo.

* Ex-embaixador do Brasil na Itália (e-mail: [email protected])