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O último discurso ao povo

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O conceito de povo, embora amplamente empregado, jamais o foi de maneira clara, e ainda hoje permanece nebuloso. Na história, ele tomou de empréstimo as cores das suas variadas abordagens. Foi a representação de uma classe social, antes de dissolver-se na ideia de massa.

Alguns autores pretendem associá-lo à existência de grupos de relativa homogeneidade cultural, que ocupam território definido e desenvolveram a consciência de sua semelhança. Outros aproximam o conceito de povo diretamente ao de democracia, o que suscita muitas contradições. O pesquisador da comunicação Jesús Martín-Barbero afirma que o povo é precursor da democracia, não como população, mas “como categoria que faz parte do nascimento do Estado moderno”.

O senso comum costuma reafirmar essa categoria como a representação do que há de mais verdadeiro: “a voz do povo é a voz de Deus.” Aqui a multiplicidade das vozes atesta uma verdade de cores divinas. Não se contestam a beleza e o conteúdo dos ditados populares, embora no mais das vezes eles traduzam mistificações.

O conceito de povo entre nós remete ao século 19, quando as noções de identidade política e cultural tomaram corpo. Essa identidade é compreendida de acordo com os seus aspectos mais visíveis, como a natureza, a raça, o caráter, as expressões culturais. E em lugares-comuns, tais como: o brasileiro é alegre, emotivo, não afeito às normas.

Na sociedade moderna, a noção política de povo dissolveu-se no redemoinho das massas com o declínio das tradicionais formas de ações políticas. Elas persistem na sua contradição só para avalizar formas do passado. Basta observar a atual campanha política para ver que o discurso ao povo foi substituído por mensagens que se espalham nas redes. Mas nem por isso ela tornou-se uma campanha asséptica. Ao contrário, ela é suja e sanguinária.

O Brasil tem um histórico de violência na política. Nesta campanha, o candidato à presidência Jair Bolsonaro foi esfaqueado, e, meses antes, a vereadora Marielle Franco foi brutalmente assassinada no Rio.

O termo fake news, amplamente difundido, não chega nem de longe a expressar o jogo pesado que se passa nas redes sociais. São mentiras, agressões e injúrias de todos os tipos que se alastram nas redes e correntes de WhatsApp, compradas como se fossem a mais cristalina verdade.

A campanha de Bolsonaro produz um bombardeio semiótico, com mensagens de grande poder ofensivo. Elas não permitem controvérsias. A grande vantagem das redes é a capacidade de descentralização das mensagens. Conforme o antropólogo Piero Leiner, que pesquisa as instituições militares, as pessoas nas redes sociais da campanha do candidato funcionam como “estações de repetição”.

Nesta campanha presidencial, os candidatos teriam grande dificuldade de falar ao povo. Mas os palanques não têm relevância hoje. Fernando Haddad, embora se expresse com clareza e boa argumentação, tem um fala acadêmica e não se libertou desse formato. Durante o debate entre os candidatos em um canal de TV, encerrando um diálogo com Ciro Gomes, disse: “Gostei das premissas do seu raciocínio”. Falou como um filósofo.

Candidato da ultradireita, Bolsonaro tem um discurso tosco, sem articulação entre as partes. E não só a linguagem verbal, também o gestual do candidato remete à violência. É assim que numa cena da propaganda política ele aparece com um equipamento empunhado em forma de arma, dizendo que vai “fuzilar a petralhada”. Seja lá o que isso signifique, se é verdade que uma imagem vale mais do que mil palavras, esta é definitiva.

Nas últimas décadas contamos com alguns políticos que falaram a linguagem do povo. O ex-presidente Lula já encarnou essa noção de povo como fiel representante de uma classe social. Ele falava a um imaginário social na condição de político que ascendeu da classe trabalhadora. O seu discurso direto, autorreferente, apoiado em imagens simples encontrava grande empatia junto às camadas desfavorecidas da população. A ênfase nos resultados dos seus próprios feitos nem sempre encontrava correspondência na realidade, mas isso, em termos de marketing político, é o que menos importa.

Entre os políticos que falaram a linguagem do povo, tivemos poucos. O jornalista Octávio Costa destaca Jânio Quadros, Leonel Brizola e o próprio Lula. Ele observa que Brizola contava fábulas e encantava plateias com suas tiradas irônicas. A fábula do sapo e o escorpião era uma das suas preferidas. Nela o escorpião pede ajuda ao sapo para atravessar o rio. Conhecedor das artimanhas do escorpião, o sapo reluta, mas termina acatando o seu pedido. Contudo, antes de chegar à outra margem é picado pelo escorpião. Brizola se referia assim aos adversários políticos, alertando que o povo devia estar atento para não ser enganado pelos traidores.

Enquanto a campanha de Bolsonaro se sustenta nas redes sociais e nos grupos de WahtsApp, a de Haddad conta com a mediação dos movimentos sociais. Este é um trunfo político que poucos candidatos poderiam se vangloriar de ter, contudo, não se sobrepôs às estratégias do adversário.

*Jornalista e escritor