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Sempre aos domingos - Duas ou três coisas sobre comunicação, pós-eleição e a verdadeira cara de um país

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O que houve com as pesquisas de intenção de voto? Ainda aguardo uma explicação convincente sobre tantos deslizes gigantescos. Uma coisa, claro, é errar em cinco pontos percentuais (para baixo) a vitória de Jair Bolsonaro numa curva ascendente. Isso é explicável. Outra é não perceber o fenômeno Vicsol Viktel (ou coisa parecida) na eleição para o governador do Rio num cenário em que Eduardo Paes nadava de braçada. As pesquisas dispensam periferias, que são redutos de igrejas evangélicas? Dispensam cidades pobres, como Teresópolis, que são redutos de empresas evangélicas? Seria ótimo que os institutos de pesquisa estudem o que deu errado e informem a sociedade sobre isso. Porque as pesquisas começam a cair na vala da irrelevância, aos olhos do público, exatamente como a grande mídia (que, aliás, continua insistindo em alardear as pesquisas como verdades absolutas). Já percebo um movimento cada vez maior, de ambos os lados, a cada divulgação de números, questionando de que adiantam aqueles levantamentos. Então, se a ideia é manter a relevância, melhor explicar os erros e as estratégias.

Como se previa desde (com mais clareza) Hillary x Trump (e bem antes disso), a mistura de notícias falsas compartilhadas freneticamente no “dark social” (redes sociais às quais não temos acesso, como Whatsapp e Messenger) e certa cobertura hiperconvencional e partidária da mídia levou a cobertura tradicional da imprensa – como fonte de informação e como influenciador político – à certa irrelevância. Os comentaristas políticos da grande mídia continuam tratando as formas de fazer política dentro dos formatos observados no Brasil a partir da capital e de lideranças regionais. Não é mais assim. O coronelismo ainda existe, seja em seu estado puro, seja travestido de milícias, mas as redes sociais mobilizaram muito mais os brasileiros com graus diferentes de educação em veículos – as redes - que compartilham emoções, mais que informações. A identificação é maior. Painéis de analistas de eleições devem ser compostos hoje como equipes de comunicação nas corporações. Não bastam velhos jornalistas enclausurados em castelos. É preciso um sociólogo, um cientista político neutro (eu disse neutro), um especialista em tecnologias da informação e mídias sociais, um marqueteiro e por aí vai. Mesmo muitos marqueteiros não perceberam que as estratégias de venda dos candidatos mudaram em tempos de Web 4.0.

É preciso repensar o famoso “tempo de TV” como estratégia política. Porque as redes sociais trucidaram as alianças formadas para aumentar este tempo na TV. E aí voltamos aos debates. Aquele painel de analistas políticos da “Globonews” reunidos no domingo na apuração das eleições à noite foi a coisa mais próxima a que assisti de um bando de cegos em tiroteio. A certa altura, a jornalista Andrea Sadi, que é muito competente, fala: “mas no segundo turno podemos ter muitas surpresas porque o tempo de TV dos candidatos é igual”. E nenhum daqueles especialistas foi capaz de levantar o argumento: “mas vem cá: se o sujeito que tinha o maior tempo de TV, que era o Alckmin, o preferido do conglomerado de mídia que estava ali, ficou em milionésimo lugar; e o primeiro foi turbinado por fake news nas redes sociais + pregação política nas igrejas evangélicas + antipetismo + ressentimento de classe, tempo de TV não faz mais tanto sentido. Pode ser importante aqui e ali, mas tem que ser relativizado. Faltaram vozes que não a “mesma prata da casa de sempre” para ponderar novos ângulos sobre o tema. É um debate importante que ainda não aconteceu porque é essencialmente sobre estratégia de comunicação política. Da grande mídia, apenas a “Folha de S. Paulo” tocou no assunto, em artigo brilhante da querida Patricia Campos Mello intitulado “Trump e Bolsonaro ‘matam’ os mensageiros da mídia tradicional”. Quanto mais a grande mídia se faz de morta nesse sentido – e não estuda o fenômeno para se reposicionar -, mais flerta com a irrelevância.

É preciso aumentar a atenção – e eventuais reações legais - à aliança imperial formada entre o fascismo e as igrejas evangélicas em seu projeto de poder (quem diabos é Windsor Wildzer (ou cois parecida), um caso típico de voto de cabresto de púlpito?). Em 21 de agosto passado, o plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) firmou o entendimento de que o pedido de voto em evento religioso pode configurar abuso de poder econômico. Por isso, o deputado estadual Márcio José Oliveira (PR-MG) e o candidato a deputado federal Franklin Roberto Souza (PP-MG) foram cassados. Ok, mas e daí? Como fiscalizar isso numa eleição geral como a de domingo passado? E como se prevenir disso? É óbvio que a aliança crentes/partidos ligados ou não a igrejas vem fazendo cada vez mais diferença no cenário político e no futuro do país. É mais do que hora de se debruçar sobre isso.

Por fim: o país conseguiu eleger um Congresso com “a parte podre” ainda pior do que a anterior e uma bancada de extrema-direita capaz de fazer corar Marine Le Pen, que afirmou esta semana que “Bolsonaro diz coisas desagradáveis, intransponíveis na França”. Sobre isso, me chamou a atenção dois depoimentos de amigas que moraram um tempo no interior de duas cidades do Sul do país, principal reduto de Bolsonarismo: Chapecó, em Santa Catarina, e São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, berços da colonização europeia. Diz um trecho do depoimento de uma delas: “Entre as coisas mais marcantes desse período (em que morou la), ficou a percepção de que boa parte das pessoas tinha do restante do Brasil, e do Rio de Janeiro em especial. Muitos, e vejam bem, não estou dizendo que eram todos, acreditavam piamente que sustentavam com seu trabalho o restante do país. Ouvi as mais diferentes versões desse mito, calcado num racismo muito mal disfarçado. Várias vezes escutei a expressão “lá de cima” para classificar vagamente tudo que se localiza do Paraná em diante. Segundo um estudo do grupo de monitoramento de redes da FGV, o ódio ao Nordeste virou o tema dominante das redes sociais... Mesmo enfrentando um período de franca bonança e relativa calma, no imaginário local o Rio não se desgrudava da imagem da violência, caos, desordem, o oposto da moral trabalhadora e ordeira lá reinante”.

Há um Brasil novo a ser destrinchado: recalcado, orgulhosamente deseducado, analfabeto funcional, racista, carregado ideologicamente por igrejas evangélicas e com um indisfarçável ressentimento de classe. Precisamos falar sobre Kevin.