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Quando tentam emudecer o melhor de nós...

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Um jovem de 38 anos é assassinado, dentre outras “razões”, por ser homossexual. As aspas aqui estão porque para pessoas de bem e afeitas à construção de um mundo mais digno, matar nunca soará razoável. Jamais será razão justificável em ambiente verdadeiramente civilizado. E, não, a notícia que abre o texto não é de hoje. Felizmente não é. Infelizmente poderia ser. Em pleno século 21, não tem sido incomum a caça aos que não se enquadram nos cânones do que seria, supostamente, a família merecedora de respeito. Fato é que há pouco mais de 80 anos, em 1936, um jovem andaluz era morto durante a ditadura de Francisco Franco.

Tentaram calar o poeta cigano de palavras adocicadas e firmes, que transitava pelo regional e universal ao mesmo tempo e autor das mais belas peças teatrais no idioma espanhol. Contemporâneo e amigo de artistas do porte do pintor surrealista Salvador Dali e do cineasta Luis Buñuel, Federico Garcia Lorca foi um entre os tantos célebres e anônimos desaparecidos em sistemas autoritários. Aqueles nos quais pensar diferente é proibido e paga-se preço alto e injusto por tal. Lorca foi perseguido por ser considerado socialista, integrante da maçonaria e uma aberração a ser extirpada, já que sua orientação sexual era visto como condenável pelos que julgavam poder julgar.

De outro lado, mas na mesma direção, há pouco menos de 50 anos, a ciência brasileira sofreu duro ataque. Durante a vigência do regime de exceção, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz – uma das mais renomadas instituições do país – foram cassados e aposentados compulsoriamente. Dentre as alegações para a perseguição aos cientistas estava, por exemplo, a proposta de criação de um Ministério da Ciência e Tecnologia, defendida por alguns deles. O episódio ficou conhecido como “Massacre de Manguinhos”. Com o processo de redemocratização, o grupo foi reintegrado aos quadros da Fiocruz, mas é até hoje um triste marco de nossa história que não pode ser esquecido.

Embora durante o afastamento dos pesquisadores a instituição tenha sido privada de importantes contribuições acadêmicas, muitos foram abrigados em outras universidades e deram continuidade às pesquisas, questionamentos e reflexões próprias que serviram de base para análises e estudos futuros. Lorca se mantém vivo e prestigiado em seus versos e cenas que estão entre as mais encenadas e filmadas do mundo. Imortalizou-se como um dos expoentes da cultura do século 20. Nos dois casos, ainda que não houvesse legado concreto a ser mencionado nos dias de hoje, não é possível aprisionar o pensamento. Pode-se deter sua expressão, o que traz consequências gravíssimas e irreversíveis.

Entretanto haverá sempre o impalpável, aquilo que jamais poderá ser cerceado. As artes e ciências nos dão pistas sobre como compor nossa melhor versão. Demonstram como podemos ser delicados e sofisticados intelectualmente. E que não se confunda sofisticação com elitismo. Não se trata de erudição, mas de sabedoria. Luxo mesmo é a compreensão, a sensibilidade, é saber se colocar no lugar do outro, a generosidade de compartilhar e repartir, a faculdade de reconhecer e reparar erros, o amor ao próximo e, principalmente, a alegria de poder ser quem se é. O que o conhecimento nos sopra é que devemos saber dar as mãos em torno de uma causa benéfica a todos e não somente a alguns. Que as mãos sirvam para afagar e não para usar o dedo em riste. Que mais aplaudam. E que não apertem gatilhos, porque, no fundo, toda bala é perdida.

* Artista profissional, mestre em Teatro e doutora em Ciências