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Cheque em branco

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O resultado do primeiro turno das eleições suscitou análises valiosas de comentaristas políticos. A pergunta que me faço é singela. Por que os eleitores, principalmente os 29,12% que votaram em branco, anularam seus votos ou deles se abstiveram, não encontraram uma terceira via? Creio que a resposta surge não só da rejeição aos dois candidatos líderes e a Ciro, mas também da repulsa ao modelo econômico da simbiose Temer-Meirelles, cujos fuzilantes efeitos sociais estão à vista de todos. Será que a estagnação econômica, o desemprego, o evidente aumento da miséria no país não sensibilizam quase 50 milhões de pessoas? Não creio. Será que os mesmos 50 milhões de pessoas sabem que o programa econômico de Paulo Guedes pretende acabar com a gratuidade do ensino público superior? Tornar o SUS mais eficiente com uma participação maior da empresa privada em seus serviços e, desta forma, relativizar seu atendimento?

Será que os eleitores de Bolsonaro sabem que estão endossando a proposta mais neoliberal que este país já anteviu, desde que aqui aportaram as caravelas de Pedro Alvares Cabral? Não creio. Voluntária ou involuntariamente, as propostas do candidato foram superficiais, quando enunciadas por ele próprio, e de fácil, porém aterrorizante, entendimento quando explicadas por Paulo Guedes, ilustre membro da confraria de Chicago, alma mater da macroeconomia antissocial. O financista apareceu uma vez na televisão, tarde da noite, e num canal pago. Não terá sido ouvido e visto pelos que estão à busca de emprego ou na iminência de perdê-lo. Foi, porém, admirado com os olhinhos brilhantes e cúpidos da comunidade financeira nacional e internacional nesta ocasião e em outras, em que se dirigiu sedutor para plateias fechadas de banqueiros, financistas, rentistas e chupas-sangue de grande e médio porte. Antonio Conselheiro do cangaço financeiro, seu programa neoliberal: vender as estatais brasileiras, inclusive a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, acabar com as proteções sociais que ainda restam ao assalariado e criar uma carteira do trabalho verde-amarela (quase um desrespeito à bandeira do país) em que não há direito trabalhista algum, provocou múltiplos voleios na quadrilha. Persio Arida qualificou Guedes de mitômano e o desafiou para um debate na televisão aberta. Guedes não foi. Mais uma vez a sociedade ficou sem saber o que foi dito, desdito. Até hoje continua esta toada.

Minha dúvida, portanto, persiste. Será que o eleitorado de Bolsonaro é tão neoliberal assim? Ou tanta insegurança em nossas ruas, tanta corrupção no conluio entre empresas privadas e políticos levaram a uma distorção sobre o papel do Estado Democrático de Direito? Pode ser.

Tenho alertado que esta eleição poderá aprofundar as injustiças sociais defendidas pelo sanatório neoliberal. A reforma trabalhista é um exemplo de desrespeito à justiça social. As reformas neoliberais são exigidas pela globalização financeira internacional. E a Constituição, em seus princípios fundadores, nos impõe a defesa de vida digna e justiça social. Só através de debates públicos, quando os candidatos discutam os vitais interesses nacionais, sem recurso a prédicas salvacionistas, se poderá saber se sairemos, ou não, dessas contradições. Não somos uma ilha de maldade num mundo perfeito. Ao contrário, nunca precisamos tanto lutar contra a ideologia de um capitalismo globalizado descaradamente antissocial. O autoritarismo patético, desbocado e deletério de um Trump não pode ser imitado por um país que sempre se pautou pelo respeito ao Direito das Gentes e pela igualdade soberana dos Estados. No século 20, o autoritarismo nos trouxe guerras, fome e morte. A sociedade civil é senhora de seu destino. E o destino de nossa cidadania só pode ser o do mais estrito respeito aos direitos e princípios individuais e coletivos inscritos na Constituição de 1988. Não há como eliminá-los, a não ser pela violência. E a violência legalizada é uma forma de servidão. Nenhuma nação se escraviza duas vezes.

* Ex-embaixador do Brasil na Itália (e-mail: [email protected])

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