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A potência de ser solidário

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É possível sermos potentes sem sermos solidários? Segundo Spinoza não, pois os homens precisam uns dos outros para viverem fortes em uma sociedade. Mas como os homens podem construir uma cidade potente? Compondo entre si suas relações constituintes para viverem afetos de alegria ativos associados a uma compreensão adequada daquilo que fortalece o corpo social. Como eles devem proceder? Se esforçando para eliminar os encontros que produzem paixões tristes; e, ao conquistar as alegrias passivas, forjar, com elas, a ocasião para pensar racionalmente as relações que produzem as suas composições corpóreas e o conhecimento das essências singulares intuídas no cerne de tais relações.

Assim, a solidariedade pode ser conhecida de três maneiras: pela imaginação, pela razão e pela intuição. Na imaginação, o homem conhece, com ideias inadequadas, o efeito dos encontros que faz com os outros homens, experimentando afetos passivos de alegria ou tristeza. Aqui, a solidariedade vigora pelo desejo de eliminar as paixões tristes, conservando as alegres. Com a razão, o homem conhece as causas dos encontros que faz, procurando entender as relações de composições que o une aos outros homens e experimenta afetos ativos de alegria, construindo uma solidariedade mais potente. Na intuição, ele conhece sua essência – que é sua potência de agir e pensar –, e busca uma conveniência maior com as essências dos outros seres humanos. Nessa ordem, presidida por afetos intensos de alegria, ele se torna um ser mais solidário. Entretanto, a compreensão adequada das relações e das essências pressupõe um combate travado contra os afetos de tristeza. Compreendamos o vetor desse delineamento.

Para explicar as relações e as essências constituintes dos seres humanos, Spinoza dispõe de duas teses: na primeira, ele diz que nós somos coisas singulares compostas por inúmeras partes constituídas por relações de movimento, repouso, velocidade e lentidão entre partículas; na segunda, que existe em nós uma relação dominante por onde se expressa a nossa essência, que é um grau de potência de agir e pensar, inseparável de um poder de ser afetado, preenchido por afetos e afecções. Ao pensarmos o ser humano dessa maneira, devemos supor que na cidade o homem se relaciona, primeiramente, com um outro homem conhecendo os efeitos dos encontros e experimentando afetos passivos que ora aumentam ou diminuem a sua potência de existir, de agir e pensar. Assim, ele sente alegria quando faz um bom encontro; e tristeza na direção contrária. Contudo, na ordem dos encontros ele não sabe a causa do que faz, sendo movido por afetos passivos e ideias inadequadas conhecidas pela imaginação. Ao viver no acaso dos encontros ele acaba agindo de uma forma desastrosa, sendo coagido por maus encontros que produzem afetos de tristeza, e todos os seus derivados, tais como a inveja, o ódio, o ciúme, a avareza etc. Cabe frisar que a situação do homem, quando não se esforça para organizar os seus encontros, é a de um ser regido pela imaginação e lançado na cidade como um ser passivo, apaixonado e inconstante. Constrangido, ele se torna impotente e retraído, buscando refúgio em um desejo de perseverança que utiliza o critério mínimo de utilidade pela lógica da sobrevivência. Além disso, na cidade ele vive atormentado pelos malefícios dos maus encontros e acalentado por poderes que organizam a tristeza pela oferta da esperança.

Ora, se esforçar para vencer a inconstância é procurar organizar os seus encontros, buscando aumentar a potência pela via da alegria e da solidariedade. Na alegria, mesmo passiva, existe composição de relações e aumento real de potência. Como na cidade, o homem só convém ao homem quando faz encontros promotores de alegria, é nas relações solidárias que ele pode ganhar condições de ter uma compreensão adequada de si através da sua razão e da sua intuição.

Assim, a potência de ser solidário se justifica parcialmente no desejo de fazer bons encontros. Ao ser solidário, o homem evita os afetos de tristeza pela organização cotidiana dos seus encontros; e busca a condição de conhecimento racional para compreender a causa real da solidariedade, tornando-a necessária. Se na ordem dos encontros ele não possui a condição necessária de ser solidário; deve dela se apossar ao se esforçar para entrar em plena posse da sua potência de agir, compreendendo as causas pela via da razão. E quando ele assim procede, busca fazer composições de relações segundo um conhecimento racional e passa a querer ser mais solidário e potente. No domínio da razão, a solidariedade é a condição efetiva que une os homens e faz da cidade um corpo mais expressivo. A composição racional entre seres humanos produz uma alegria ativa nascida do entendimento, sendo um exercício ético de liberdade. Ser solidário é ter a sabedoria das relações por meios racionais, compreendendo as noções comuns dos seres humanos; para construir uma cidade mais potente e alegre. Na razão, o homem descobre que uma cidade mais potente expressa alegrias resultantes de um agenciamento solidário. Quando nesse nível ele for conduzido à intuição da sua potência, aí ele alcança a compreensão imediata de que sua essência é parte intensa da potência da cidade. E, enfim, a solidariedade se explicita como a condição de uma liberdade total conhecida pela intuição da essência, cujo grau de potência conjuga a cidade com a infinita potência da natureza.

* Professor de Filosofia (PUC/Rio e UVA)