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O museu há de resistir, se Gaia nos permitir

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O fim do Museu é como a morte de um parente muito amado, mas que era, ao mesmo tempo, importante para todo o mundo. Meu egoísmo me fez sofrer quando ruiu, junto com as chamas, meu tão sonhado mestrado em Antropologia no museu; mas meu altruísmo também, quando miro a ausência para as gerações futuras da memória que pude possuir. Perdem não apenas meu afilhado e minha filha, mas todos os que precisarão, mais do que nunca, de muito conhecimento e sabedoria para encarar o nosso duro porvir. Se o incêndio sacramenta uma trágica derrota, parecendo restar apenas resistir à distopia em que a realidade se transformou, digo, com o antigo professor do museu, Darcy Ribeiro, que “eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.

Lamento nunca mais estarem disponíveis as potentes ferramentas que eram as salas expositivas, oriundas de pesquisa e trabalho de décadas. Lamento não mais poder falar lá, para crianças e adolescentes de escolas públicas, sobre “A origem da vida: de onde nós viemos?”, fazendo dele um espaço de reflexão crítica sobre para onde iremos. Lamento que a sala de etnologia indígena nunca mais será uma ponte que nos aproxima dos povos originários e que nos alerta para a importância da preservação de nossas naturezas. Lamento que a sala Kumbukumbu sobre África não poderá mais ser usada para a problematização dos cruéis processos de colonização, como aquele de 1904, em que alemães exterminaram o povo Herero e Namaqua (Namíbia). Lamento que não teremos mais como passar dessa sala para a dos Caçadores Coletores, onde estavam os esqueletos de Luzia, ancestral mais antiga encontrada em território brasileiro e que mudou as hipóteses de ocupação nas Américas. Nela, refletíamos sobre como chegamos até aqui, não enquanto localidade, mas como condição: como que, após a Revolução Neolítica, o desenvolvimento da agricultura e a domesticação de animais nos tornam sedentários, fazendo surgir a propriedade, a acumulação de excedentes e a complexificação das estruturas sociais.

Após absorvidas essas informações, como defender a pertinência de ufanismos nacionalistas em nome de um isolamento amesquinhado? Certamente, quem defende a ideia rígida de fronteira nunca teve a oportunidade de se debruçar com a mente e o coração abertos sobre a humanidade trazida no museu, tanto em nossa história terrena quanto em nossa localização no universo. Nele víamos o meteorito de Bendegó, que dava a idade da nossa morada: aproximadamente 4,5 bilhões de anos. Em um painel geológico de Eras, Épocas e Períodos da Terra, éramos confrontados com a grandeza de nossa insignificância. Sabíamos que somente após algumas centenas de milhões de anos emergiram os primeiros organismos vivos unicelulares, dominando 70% de todo o tempo; que a extinção dos dinossauros não foi a primeira nem a maior ocorrida, pois pelo menos outras três haviam provocado extinções de 70% a 90% das espécies existentes. Ora, a extinção do museu, ocorrida com apenas 126 anos de República, é apenas mais uma dentre outras das quais nós, humanos, fomos capazes. Mesmo estando no último segundo de um relógio de 24 horas da Idade da Terra, conseguimos destruir a metade das florestas milenarmente criadas por Gaia e tantas outras milhares de espécies nela residentes, imprimindo, hoje, um ritmo de extinção próximo àquela dos dinossauros no período Jurássico/Cretáceo. Se não tomarmos consciência, o mesmo acontecerá conosco. Todavia, se, com os dinossauros foi um meteorito alienígena que os extinguiu, agora nós seremos o próprio meteorito a nos aniquilar. Talvez com isso, Gaia ganhará, expulsando-nos, como filhos indignos que usufruem com desrespeito dos recursos que lhes são dados.

Lamentamos a quantidade de história e de patrimônio perdidos; mas quem já passou pelo museu sabe que somos apenas poeira das estrelas e que isso é apenas um detalhe. Contudo, enquanto não voltamos ao pó, façamos de nossa consciência um instrumento de luta. Da mesma forma que o Carnaval nos presenteou, com a Imperatriz Leopoldinense, com um adeus sem querer ao museu, podemos continuar insistindo em enredos possíveis e felizes para o nosso nublado porvir. Seja no embate ou no miudinho, continuemos vivendo com a felicidade das frestas. Claro, se Gaia nos permitir.

* Cientista social; foi educador estagiário no Museu Nacional