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Nas ruínas do museu, uma metáfora do país

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A comoção causada pela destruição do Museu Nacional, instituição científica que acabou de completar 200 anos em junho, tirou o país da letargia em que se encontra e pode servir de alerta para evitar novas e anunciadas catástrofes. Um ato de protesto reuniu milhares de manifestantes na Cinelândia. Centenas de pessoas correram para a Quinta da Boa Vista, onde se encontra o museu, ao lado do também abandonado Jardim Zoológico, para ajudar no recolhimento dos escombros. Num país paralisado pela recessão e o desemprego, às vésperas de uma eleição que vai decidir o seu futuro, chega a ser desconcertante que isso tenha ocorrido.
Anestesiado, o país parece que acordou. O impacto causado pelas gigantescas labaredas mostradas pela televisão e espalhadas pelas redes sociais provocou uma reação inesperada. Tornou-se o principal assunto de conversas diante de bancas de jornais, no metrô e nos ônibus. Humilhados e marginalizados, os brasileiros tiveram enfim a oportunidade de erguer a sua voz num protesto contra a destruição de um patrimônio cultural. Situado na Quinta de Boa Vista, com seu amplo parque ajardinado, o espaço tornou-se uma referência simbólica da cidade. Nos fins de semana, famílias lotavam seus jardins, transitando entre o Zoológico e o Palácio.
Ao mesmo tempo, a perda de valiosos tesouros da História da humanidade transformou-se num desastre de grande repercussão internacional. Fez lembrar o famoso incêndio do Palácio do Reichstag, em fevereiro de 1933, em Berlim, antevéspera do surgimento da Alemanha nazista. Valendo-se da acusação de uma “conspiração comunista”, Hitler foi nomeado Chanceler quatro meses depois. As circunstâncias e os motivos são completamente diferentes. Lá, o bode expiatório foi um desconhecido ativista, Marinus Van der Lubbe, acusado de agir a serviço da Internacional Comunista. Mais tarde, historiadores demonstraram o envolvimento de nazistas no atentado.
Aqui, um candidato de extrema direita, com um discurso nazista, ameaça tocar fogo no Brasil. Discrimina mulheres, gays, estrangeiros e empunha armas simulando fuzilar seus inimigos políticos. Já os responsáveis pela destruição do Palácio do Museu estão aí, visíveis na cena politica. Peritos da Policia Federal não terão trabalho para buscar as causas e apontar os autores. Está dispensada de revolver as cinzas à procura de fios desencapados, de esqueletos corroídos por cupins.
Os fios desencapados estão nos gabinetes do Palácio do Planalto e do Ministério da Educação. O ministro, ninguém sabe quem é, nomeado a titulo de barganha em troca de votos no Congresso. São parlamentares de quinta categoria, da turma que é flagrada carregando malas de dinheiro, que desconhecem o significado da palavra cultura. Do Museu Nacional, um patrimônio da humanidade, só ouviram falar depois da tragédia do incêndio.
São décadas de desvalorização do patrimônio histórico e científico. As verbas destinadas ao setor foram reduzidas de forma drástica. Sob a gestão de Michel Temer, o desastre se acentuou com a emenda do teto de gastos do banqueiro Henrique Meirelles. Tudo serve como justificativa. O irrisório repasse anual destinado à sua manutenção, de apenas R$ 520 mil, caiu a menos da metade nos últimos cinco anos. O museu guardava um acervo de 20 milhões de peças. Lá funcionava um dos melhores programas de pós-graduação em Antropologia do Brasil e do mundo. Lá estava a mais importante Biblioteca de Antropologia da América Latina.
Somos todos mais pobres hoje, diz a antropóloga Aparecida Vilaça, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Ela chorou abraçada a seus alunos em frente ao museu em chamas. “Ter os alunos ao meu lado, fortes, de mãos dadas, esperançosos, carinhosos, fez-me ver uma faceta bonita do caos, e acendeu minha esperança no futuro. Um país em ruínas, corrupto, sem qualquer respeito à educação e à cultura, e esses alunos mostrando que o que experimentam ali é crucial para as suas vidas, que estão dispostos a lutar. Estou pronta para continuar, para dar aulas debaixo das árvores do nosso jardim, se for o caso”.
Diante da indagação “que país é este?”, a tenacidade de Aparecida mostra que há salvação.

* Jornalista e escritor