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O meteorito e a astrônoma heroína

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O incêndio que destruiu o Museu Nacional é o assunto da semana, do mês, a tragédia cultural do ano. Entre comovido e revoltado com o descaso e o corte de verbas da instituição, o país lamenta a destruição de vinte milhões de itens, que vão desde o primeiro dinossauro montado no Brasil até o mais antigo fóssil humano já encontrado, passando por múmias, sarcófagos e mais de setecentas peças das civilizações grega, etrusca e romana. As imagens das chamas vermelhas corroendo paredes, saindo pelas janelas, clareando todas as aberturas do palacete correram mundo e pareciam tiradas das páginas do romance distópico “Fahrenheit 451”. Ironicamente, sem spoiler, a história gira em torno de livros que são queimados a mando de governantes porque o conhecimento representa um perigo muito grande ao bom andamento de uma sociedade que não pensa. No mundo das páginas escritas pelo americano Ray Bradbury, os livros são proibidos. E viram chamas. As mesmas chamas que destruíram o conhecimento armazenado no Museu Nacional. É a vida que imita a literatura. Uma literatura que vai na direção contrária à utopia, palavra que, no dicionário, significa “lugar ou estado ideal, de completa felicidade e harmonia entre os indivíduos. Qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal”. O incêndio no Museu Nacional poderia, sim, ser o enredo de um livro num cenário de falta de esperança, de tristeza, de desespero.

Em meio ao terror que derreteu grande parte do conhecimento e da cultura brasileira, entretanto, nem tudo está perdido. O meteorito está lá, intacto, salvo. O Bendengó, o maior do país, descoberto no sertão da Bahia, em 1784. Além dele, outros 18 meteoritos menores também ficaram livres de qualquer dano. A heroína em meio à tragédia foi ela: a astrônoma Maria Elizabeth Zucolotto, que entrou em sua sala, na manhã seguinte ao incêndio, quando partes do teto ainda caíam, para resgatar os meteoritos que lá estavam. No cômodo, a astrônoma abrigava parte da maior coleção de meteoritos do país. Lá, havia 24, agora são 18. A maioria. Diante da destruição de mais de 90% do acervo, o fato de a astrônoma Maria Elizabeth ter conseguido salvar grande parte é, sim, motivo para um sorriso de alívio. Mas a astrônoma não sorriu. Ela estava preocupada com o restante da coleção de meteoritos do Museu Nacional, que tem mais de 400 peças, entre expostas e não expostas, e ainda não tinha recebido notícias sobre essas peças.

À imprensa, a astrônoma afirmou que a notícia do incêndio chegou até ela pelo telefonema de uma vizinha. E que o desespero foi tamanho, como se tivesse morrido alguém da família. No mesmo instante, ela correu para o Museu Nacional.

Se teve heroína, teve também herói. Os veículos noticiaram que um grupo de pesquisadores e professores arrombou portas para resgatar espécimes de moluscos que compunham o inventário da fauna da América do Sul. Mas quando levamos em consideração que em um passado não tão distante – na década de 20 – a autora feminista Virginia Woolf escreveu um livro com o sugestivo nome “Um teto todo seu”, sobre a falta de condições básicas para que as mulheres pudessem se dedicar à criação, aos estudos, num espaço livre de interrupções, a atitude determinada da nossa astrônoma heroína para resgatar objetos de anos e anos de estudo ganha contornos que inspiram. Inspiração, essa é a palavra. Tão necessária nesse cenário de “Fahrenheit 451”. Se há indignação, comoção, revolta e lamento pela perda imensurável do Museu Nacional, há um traço de inspiração. Uma astrônoma que entra numa sala com risco de desabamento para salvar meteoritos. Uma mulher inspiradora. Um sopro de utopia num presente distópico.

* Jornalista

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