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'Verba pública é o coração do fomento à ciência', diz diretor do Serrapilheira

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Na mesma semana em que milhares de pessoas foram às ruas protestar contra os cortes governamentais que atingem a ciência do Brasil, a única instituição privada nacional de fomento à pesquisa, o Serrapilheira, anunciou o investimento de até R$ 12 milhões em estudos brasileiros.
Mas o diretor do instituto é enfático ao dizer que dinheiro privado não é a solução, que ciência precisa ser feita com verba pública e não pode ser focada em lucro.
"Precisamos aceitar a futilidade do investimento científico", diz Hugo Aguilaniu, diretor do Serrapilheira, em entrevista à Folha de S.Paulo. "Ninguém vai curar diabetes porque quer curar diabetes. Você faz uma pesquisa que parece totalmente inútil e essa descoberta feita ali vai levar ao entendimento do processo da cura do câncer. Nunca ou raramente é uma coisa calculada."
E, segundo ele, o governo tem que assumir esse custo que não necessariamente gera retorno. "É como se fosse um acordo entre o governo e o resto da cadeia produtiva. Em qualquer lugar do mundo é assim. Mesmo nos EUA, onde as indústrias investem pesadamente nas pesquisas, o investimento público é muito forte porque as pessoas entendem esse papel. O investimento público precisa apoiar a pesquisa básica, que depois gera tecnologia, produto, economia para as empresas."
Para ele, é impossível contar com investimentos privados como base do fomento à ciência. "O coração do fomento à pesquisa precisa ser público. O privado pode decidir amanhã que não vai apoiar matemática, porque isso não rende dinheiro."
O próprio Serrapilheira se diz preocupado e afetado pelo contingenciamento de verbas nas universidades. "Os cortes machucam o ecossistema científico", diz Aguilaniu. "Obviamente há problemas nas universidades, como uma carga administrativa que é alta demais, mas isso não é específico do Brasil. Só que sem o mínimo de recursos fica complicado. Você corre o risco de quebrar a produção. O laboratório não é algo que você possa desligar e religar seis meses depois. Precisa de continuidade."
Segundo Aguilaniu, colocar pressão sobre pesquisadores para obter resultados, aplicabilidade e lucro é uma medida contraproducente.
"É perigoso porque a pesquisa, por definição, é um processo lento. Não é um processo eleitoral, não se acaba em quatro anos. E, mesmo se acabar, ela gera conhecimento, que tem que ser transformado em tecnologia, que será transformada em produto", diz Aguilaniu. "Essa ideia de que eu, Hugo, vou gerar um produto que vai gerar dinheiro agora, não existe."
Sobre os 12 pesquisadores escolhidos pelo Serrapilheira para receber R$ 1 milhão cada, ele diz que o instituto não espera que os estudos sejam rentáveis. A instituição aposta na chamada "ciência de noite", mais arriscada –e, por isso, não necessariamente com apelo para financiamentos públicos, mas com grande potencial em caso de sucesso.
Na semana passada, o ministro da Casal Civil, Onyx Lorenzoni, defendeu o contingenciamento e disse que as pesquisas brasileiras "não estão conectadas com novas tecnologias" e que o Brasil "ainda faz ciência básica", em comparação com a aplicada.
Aguilaniu prefere não comentar as declarações do ministro, mas diz que o funcionamento do processo científico não é simples como faz supor a fala de Lorenzoni. "Não basta você colocar para conversar um pesquisador e um CEO de empresa. Todo tipo de tecnologia é a emergência da produção de um conhecimento novo, e para chegar a um produto é necessário descobrir mil coisas. Não basta você colocar uma empresa no meio do campus universitário."
Para que esse tipo de contato seja realmente proveitoso é necessário um tradutor, alguém que saiba falar a língua da ciência e das empresas, afirma Aguilaniu.
Em 2018, o Serrapilheira selecionou 14 projetos de divulgação científica para receber R$ 100 mil cada um com o objetivo de melhorar a percepção pública da ciência no país e aproximar cada vez mais jovens da área. Além disso, o instituto tem a preocupação de formar uma rede de líderes cientistas entre os contemplados com financiamentos.
Mesmo assim, há espaço para participação do setor privado na pesquisa, e o instituto afirma esperar que novas entidades similares surjam na sua esteira.
O Serrapilheira foi criado em 2017 pelo documentarista João Moreira Salles e sua mulher, a linguista da PUC-RJ Branca Vianna Moreira Salles, que doaram R$ 350 milhões para um fundo patrimonial.
"Acho que a cultura da filantropia ainda não é muito desenvolvida, mas também não há incentivo fiscal para isso no Brasil. Em outros países, é diferente, e isso é um freio aqui. Tem que ter alguém muito motivado para criar uma fundação como o Serrapilheira, porque o custo é alto", diz o diretor.
Ao mesmo tempo, ele afirma que o Serrapilheira trabalha para incentivar o terceiro setor, que tradicionalmente se preocupa com outras questões, como direitos humanos. "São temas absolutamente importantes, mas acreditamos que há espaço para um terceiro setor de ciência. Por enquanto somos a única instituição, mas não vemos nenhuma glória nisso."
Para Aguilaniu, a visão sobre ciência precisa mudar, e a área deveria começar a ser pensada como parte da cultura do país. Ele compara cientistas e artistas, ambos com ações "profundamente humanas".
"As pessoas têm que entender que a ciência é legal não porque gera dinheiro, mas porque ela define quem somos."

PHILLIPPE WATANABE

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