Ao alcançar o alto da rampa, o presidente estará só e, ao seu lado, apenas a própria sombra Ao botar o pé na categoria de ex, Lula já terá descido, aos trambolhões, a rampa que galgou inebriado NAQUELA FRANJA em que, na História do Brasil, os costumes políticos ainda não têm status oficial, destaca-se por conta própria o axioma de autoria do general Golbery do Couto e Silva, pelo qual o presidencialismo se faz sentir em sua plenitude quando, na cerimônia de posse, o presidente eleito chega ao alto na rampa de acesso ao Palácio do Planalto e, de uma vez por todas, se convence de que chegou ali pelos próprios méritos. O resto vira cinza. É o momento culminante do presidencialismo virtual e, dali por diante, a fonte do poder intransferível.
Durante a passagem pela tropa formada, sob colorido histórico, prevalece o efeito gradual da rampa sobre a primeira pessoa do singular em nome do espírito republicano: é a sensação definitiva de po der. Ao alcançar o alto da rampa, o presidente estará só e, ao seu lado, apenas a própria sombra. É o momento definitivo da metamorfose que se processa a partir das urnas.
Daí por diante não resistirá mais ao efeito inebriante do poder que lhe proporciona a certeza de que deve apenas aos próprios méritos ter chegado até ali. É impessoal e transcendental a vertigem, pois a rampa termina onde começa realmente a história de cada um. A rampa do Palácio do Planalto é mais do que o símbolo de uma cerimônia cívica. O carisma transcende a circunstância do próprio mandato. É a tomada de consciência e, se em algum momento a fé faltar, uma voz lhe lembrará que está ali pelos seus próprios méritos.
Ao passar pela tropa formada, o axioma do general Golbery, como ocorre a qualquer verdade que dispensa a necessidade de ser demonstrada, vai sussurrando que o presidente eleito já está sob os efeitos do poder auferido no sentido ascendente. Por se tratar de verdade intuitiva, que dispensa explicações, só não está imune de ser entendida também, desde que as aparências autorizem, como resíduo de fundo napoleônico.
Antes de trazer Bonaparte à cena, não custa lembrar que, ao passar por sua vez à condição de ex, o presidente que sai não é prevenido dos sintomas relativos ao dogma de Golbery, na descida da rampa.
Mas tem muito a ver com depressão incurável a que se expõem os que se retiram, à medida que ficam para trás e, queiram ou não, acabam nivelados por baixo depois de viver os dois lados do ritual.
No caso de Luiz Inácio Lula da Silva, com todo o respeito, ao botar o pé na categoria de ex, já terá descido espiritualmente, aos trambolhões, a rampa que galgou inebriado. Mas não há como sair de cena como se fosse apenas o contrário do que entrar. Está num país de pernas para o ar, no bom sentido com que se trata, graças às pompas de quem não foi poupado de ser alertado, de um jeito ou de outro, que um dia desceria a rampa do Planalto.
Um cidadão anônimo, que a história reserva para tais momentos, bem poderia se incumbir de compensar junto a Lula os efeitos equivalentes à descida da rampa contan do-lhe o episódio em que emissários de Napoleão Bonaparte foram credenciados para a missão de convencer sua mãe a se abalar da vida rural na Sicília para assistir à coroação do seu filho como imperador da França, quando tomaria das mãos do papa, de corpo presente, a coroa imperial para não ficar devendo à Igreja a sua sagração, e a botaria na própria cabeça.
Foi o equivalente ao axioma de Golbery, com antecedência suficiente para não gerar polêmica ociosa.
Conta a História que dona Letícia Remorino, cuja desconfiança em relação ao poder era congênita, cedeu ao pedido do filho e se dispôs à longa viagem em que fazia ouvir, como advertência e ressalva, sua ladaínha – “contanto que dure” (“Pourvu que ça dure”, no francês que ela pronunciava com forte sotaque italiano).
E, realmente, não passou de uma década. Por aí se esvai a glória do mundo.
Por Mauro Santayana: [email protected]